A notícia da nomeação oficial de Ricardo Conde para presidente da Agência Espacial Portuguesa - Portugal Space foi recebida com "grande satisfação" pelo amigo e ministro da Ciência, Manuel Heitor, que tutela uma área em que vê grandes oportunidades para Portugal, sobretudo nestes tempos de recuperação e fundos europeus. Mas o que aconteceu nesta semana, ainda que resultasse de um concurso internacional de nove meses e que contou com 14 candidatos, foi a mera formalização - merecida e justificada - de uma situação que já era a prática: desde setembro , quando substituiu interinamente a italiana Chiara Manfletti e se assegurou uma cara portuguesa à frente da agência portuguesa que faz parte da rede espacial europeia, que Ricardo era o man in charge..A tarefa assenta como uma luva ao engenheiro eletrotécnico e de computadores que entrou no setor aeronáutico e espacial em 1993, e que o ministro da Ciência descreve como uma peça que fará toda a diferença na concretização da Estratégia Nacional Portugal Espaço 2030, "de forma que o país seja reconhecido pelo seu papel no desenvolvimento do setor espacial mundial e no âmbito das interações Espaço-Terra-Clima-Oceano"..Vão de facto bem longe os tempos em que Ricardo andava à procura de trabalho nas colheitas de fruta pela Europa fora, em busca de rendimento e forma de ajudar a família retornada de África. Mas não os esquece - antes mantém esses tempos presentes e colhe ainda as lições de então, inclusivamente no pomar da sua casa, na Ericeira, onde vive desde os tempos da tropa, no qual só cresce o que tem a sua autorização e a sua mão..Simples e frontal, revela mágoas e entusiasmos com a clareza do olhar, que na manhã em que nos encontramos no Delidelux, chegado ao Tejo que vai correndo paralelo a Santa Apolónia rumo a uma Lisboa mais agitada, toma as cores do rio debaixo do sol de fim de verão..É por esses tempos de uma segunda infância em Vila Nova de Cerveira, regressado de Angola com dez anos feitos - e que lhe rendeu a amizade do vice-almirante Gouveia e Melo -, que começa a contar-me como uma vida tirada das terras do avô, agricultor, o levou ao Espaço. "Sou um dinossauro da indústria espacial", assume o engenheiro eletrotécnico e de computadores que acabou por tirar uma pós-graduação em Tecnologias Espaciais e entrado na área que hoje lidera dois anos depois de começar a trabalhar, participando em vários programas nacionais e internacionais. Mas lá iremos..Pedimos sumo de laranja, pão de deus e empada alentejana de espinafres e enredamos a conversa pelo início, como deve ser. Um início que recua a 1975, quando a independência de Angola o tirou da então cosmopolita África e o fez mergulhar "na ruralidade profunda" do Norte de Portugal. "Fomos do 80 ao 8, eu, a minha mãe, o meu irmão e a minha irmã, todos em casa do meu avô e a viver dos subsídios e apoios do Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais - ainda me lembro de umas latas de queijo branco que nos davam, que era bem bom", recorda sem mágoas. O pai, que trabalhava numa plataforma marítima de capitais americanos, ficou para trás e durante os primeiros tempos, entre as nacionalizações e as perseguições aos colonizadores, não sabiam sequer se estava vivo. Havia de se lhes juntar e arranjar trabalho de oficineiro, onde o filho, então adolescente, ajudaria a arranjar carros nos intervalos da escola..Na quinta do avô, tinham vacas, patos, perus, faziam vinho, viviam da terra e o pouco dinheiro que se fazia era para as pequenas coisas que não conseguiam produzir. "Lembro-me bem de ir com a Pisca e a Bonita no carro de bois à feira", sorri. Diz que os tempos de vida agrícola, longe do romantismo com que pintam essa realidade, lhe deram resiliência, capacidade de trabalho e força, física e anímica. E vai contando como a proximidade nortenha com uma Europa mais preparada lhe marcou o percurso.."Como o dinheiro era pouco, havia o hábito de ir procurar trabalho nas vindimas, em França e na Suíça. Íamos à boleia nos camiões TIR, a partir de Valência, ficávamos em campings e comíamos quando podíamos." Num desses empreendimentos - entrado na Suíça disfarçado de turista e com notas de escudos em volume para parecer que tinha os francos exigidos a quem ali quisesse chegar -, um mau momento mudou tudo. Para melhor. Há semanas sem trabalho, sem comida e sem dinheiro sequer para pagar o espaço no acampamento, experimentou a apanha de morangos - "regressávamos de gatas, nem conseguíamos endireitar-nos", conta - e acabou por começar a procurar trabalho nos campos de damascos. Fugir à polícia que perseguia os ilegais fazia parte e numa dessas fugas lançou-se ribanceira abaixo e foi ajudado pelo dono do pomar, que garantiu aos fiscais que ele era seu trabalhador e prometeu levar os papéis que o provavam à esquadra nessa mesma tarde. Se o disse, cumpriu-o à letra - mesmo com um acidente de carro pelo caminho e de ter deixado Ricardo em observação no hospital, pelas dores da queda e do desastre..Agradecido até hoje pelo gesto e pela prova de confiança, dedicou-se ao trabalho, passou a liderar a equipa e só não entrou para a família porque a sobrinha desse suíço que lhe dera a mão e mudara a vida se mudou para África, em missão humanitária, e Ricardo não quis trocar a faculdade, que acabara de começar, por esse regresso. Ainda fala de Christine com carinho e entusiasmo, mas teria sido bem diferente o seu futuro se não tivesse ficado pelo Técnico, depois de o diagnóstico de daltonismo lhe proibir o caminho indicado pelo pai na escola naval do Alfeite e depois na Força Aérea..Antes de acabar a faculdade, viveria mais um momento caricato: chamado à inspeção, no Porto, acabou numa junta médica para se explicar, porque ninguém acreditava que não se dizia daltónico para fugir à tropa. Ele, que fora impedido de entrar na Marinha e na Força Aérea, acabou a provar o respeito pela instituição militar na tropa. Integrado na Cavalaria, em Santarém, teria ainda assim oportunidade de prosseguir caminho nas engenharias - e viria ainda a dar aulas em Mafra. Mas depois de uma passagem por Alemanha, EUA e Inglaterra, rapidamente entrava nas OGMA, em Alverca, dedicando-se às então pioneiras tecnologias do Espaço. E começando um novo e mais permanente capítulo..A ambição de tentar criar uma Agência Espacial em Portugal vem-lhe desses tempos, conta-me, já com o brunch avançado e os cafés pedidos para rematar. E se a primeira tentativa foi um fracasso - "na altura o país estava de tanga... e os ultraliberais, como Paulo Portas, no governo não acreditaram no projeto. Eu sou de direita, mas acredito no impulso público à política industrial, acho que temos de saber o que queremos para o país, ter ideias estruturadas, fazer escolhas e investir nisso", diz Ricardo Conde. E insiste: "Eu sou um liberal, mas acredito que o Estado deve ter uma função de pensamento estratégico do que o país deve ser, ler a vontade coletiva. Depois há a forma de o fazer e aí pode divergir-se, mas os grandes objetivos devem ser desígnios assumidos." Exemplifica com a indústria naval, que não se entende que o país não tenha, e com a mais recente aposta no setor espacial, que acredita ser uma oportunidade de ouro para o país, com base na ideia de Mariano Gago, que entendeu que era preciso "fazer parte do clube europeu" para haver uma estratégia e assinou o acordo a European Space Agency (ESA)..Estende os elogios a Manuel Heitor, que deu vida à Portugal Space e teve o cuidado de ir buscar para a liderança original, em 2019, uma profissional da Agência Europeia - para evitar a captura por boys. E agora é ele o sucessor, saído de um concurso internacional. "Eu tenho duas filhas, de 13 e 11 anos, as minhas âncoras, e digo-lhes muitas vezes que há sempre quem seja melhor do que nós, e nós temos de conviver com isso. Tudo na minha vida é temporário, tenho bem essa noção, por isso sou ambicioso na ação mas em nada mais - e certamente não tenho ambições políticas. Sou uma pessoa de consensos e livre de pensamento e se não fosse escolhido para este papel faria qualquer outra coisa, sem problema.".E que visão tem para a indústria espacial, para esse mandato de cinco anos que arranca agora? A visão de Ricardo Conde é bem esclarecida e se o Espaço é o centro da coisa, o caminho que traça é de pés bem assentes na terra. "Há potencial , há vontade, há visão e há oportunidade de dizer o que se quer. Aqui em Portugal estas são áreas potenciais mas ainda desconhecidas, é preciso adquirir conhecimento. Hoje, esta atividade reúne 60 empresas e institutos que trabalham a nível nacional para a indústria internacional." Exemplifica com a Autoeuropa e as empresas satélites que se desenvolveram à volta dessa que é das nossas maiores exportadoras, empresas de uma comunidade que se especializou e hoje consegue servir outras empresas. "E nessa construção, foi preciso o Estado apoiar o setor, criar condições para atrair indústria que depois tem esse efeito multiplicador por todo o país. No Espaço, é o mesmo.".Portugal contribui com 20 milhões por ano para a Agência Europeia e a ESA adjudica aqui parte dos projetos, permitindo-nos crescer em capacidade, criar empresas e fazer "coisas fantásticas". Ricardo entusiasma-se e a quem o ouve, ao dar exemplos do que faz a tecnologia portuguesa nas missões espaciais europeias: de satélites a câmaras, sistemas de navegação, gadgets e software de primeiríssima qualidade e engenho que permitem identificar fogos, derrames de petróleo nos oceanos, o nível das águas, mas também asseguram os dados livres que nos guiam os GPS.."A minha função é que se cumpra o nosso desígnio e a estratégia nacional para o Espaço, identificar como e definir o frame financeiro para que seja possível. E o PRR dá-nos essa disponibilidade, mas há que garantir que o governo esteja consciente de que esta é uma área de aposta, de resiliência do país e de desenvolvimento, no pilar da digitalização.".A lógica vai mais longe e Ricardo defende que esta é também uma oportunidade de dar resposta aos desafios ambientais, através da criação de um forte operador de dados de observação da Terra, bem como indo ao encontro de um objetivo pessoal: que a agência portuguesa seja reconhecida pela sustentabilidade das suas políticas. "No âmbito da emergência climática, é preciso conhecer para mitigar riscos, rumo à sustentabilidade. Não podemos continuar a fazer escolhas brandas neste tema, a escolher entre o fogo e a frigideira." E a pandemia acelerou a mudança que leva a tecnologia a ser assumida como meio para chegar a todas as respostas certas..Já a caminho da saída, Ricardo Conde reconhece-se verdadeiramente empenhado nesta luta ambiental e comprometido em deixar as filhas orgulhosas daquilo que foi fazendo. Não gostaria de viver noutro sítio e quer que as filhas sintam o mesmo amor por Portugal e aqui encontrem todas as possibilidades. E garante que as há em boa medida, como há talento, como se vê pelo EuRoc - European Rocketry Challenge, que acaba de arrancar e que vai reunir em Portugal 19 equipas e cerca de 400 estudantes de 13 países europeus até dia 17. Nesta que é apenas a segunda edição, a competição de lançamento de foguetes universitários promovida pela Agência Espacial Portuguesa já tem uma equipa do Técnico.."Há muito talento, mesmo entre miúdos mais novos, do liceu", garante Ricardo Conde, que dará o seu melhor para abrir portas a esse desígnio em Portugal.