Nome de código E120. O agente secreto americano que tingiu a Europa de vermelho

No século XVI, o oceano Atlântico abriu a rota a uma matéria-prima que arrebatou a Europa. Por quase 300 anos, os espanhóis monopolizaram a exploração e exportação de um inseto que serviu de base ao corante desejado pelas elites religiosas e políticas. No século XXI, a cochonilha continua a alimentar toda uma indústria.
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Roubo, suborno, pirataria, extorsão, contrabando; no século XVIII franceses, ingleses e holandeses afadigavam-se no encalço de uma matéria-prima, de valor apenas suplantado pelo ouro, que Espanha mercadejava há perto de 300 anos. Das Américas, mais precisamente da Nova Espanha, território que se estendia do sul dos atuais Estados Unidos até à Costa Rica, chegavam ao porto de Sevilha, na Península Ibérica, centenas de milhões de toneladas de uma matéria corante que enriquecia os cofres da coroa espanhola. A Europa rendera-se desde o século XVI à cor carmim, fulgente, que adejava nos trajes dos cardeais, lançava-se em combate à boleia das temidas casacas-vermelhas dos soldados ingleses, servia de base a pigmentos para as artes e não se escusava a apresentar-se em manuais de cozinha como corante alimentar (é disso exemplo a obra inglesa de 1747, The Art of Cookery). Espanha, ciosa do tesouro que descobrira além-mar, mantinha duras sanções a todos os que revelassem as fontes e o processo de fabrico do corante, cuja exploração preponderava no atual estado de Oaxaca, no território mexicano.

A seis mil quilómetros da fonte inesgotável do tesouro, a Europa especulava sobre a matéria-prima que lhe estaria na base, eventualmente uma semente, ou grão de pimenta, ou mesmo um verme. Samuel de Champlain, explorador e cartógrafo francês, afirmava no início do século XVII que o corante provinha de uma noz que crescia nos campos do Novo Mundo, tal como as ervilhas medravam na Europa. Em 1685, os grãos de pó de coloração intensa, submetidos ao microscópio do fabricante de tecidos e inventor holandês Antonie van Leeuwenhoek, devolviam respostas inconclusivas: talvez sementes ou parte do órgão de uma mosca. Uma análise mais fina do construtor de microscópios resultou numa conclusão aproximada. O produto corante que se tornara concorrente do valiosíssimo Púrpura de Tiro (obtido das glândulas de diferentes espécies de moluscos) resultava de um inseto repleto de ovos. Abriu-se uma brecha no segredo que Espanha mantinha na produção e comércio de cochonilha.

A Dactylopius coccus, assim cataloga a ciência a minúscula cochonilha de cinco milímetros, tem o seu habitat natural nos ambientes secos da América Central e do Sul. Proveniente de uma família alargada, com mais de 67 mil espécies, a cochonilha soma parentes próximos nos pulgões e cigarras. A curta vida de escassas semanas, passa-a o inseto imóvel a parasitar um cato endémico das Américas. Das palmas do cato nopal a fêmea de cochonilha extrai seiva e humidade. Ali nasce, procria e fenece a cochonilha, sem nunca abandonar o mesmo local. A imobilidade que expõe o inseto aos predadores naturais é recompensada pela produção abundante de ácido carmínico, um agente natural de defesa que ocupa até 22% do corpo do inseto. Má fortuna para a cochonilha. O agente que a defende de pequenos predadores deixa-a há centenas de anos à mercê do predador no topo da cadeia alimentar, o Homem.

Quando no século XV, Espanha atracou nas margens do Novo Mundo, há muito que Astecas e Maias, recorriam ao corante propiciado pela cochonilha. Com ele cobriam o corpo, ilustravam códices, tingiam tecido e as paredes das habitações. Eram também detentores do processo de fabrico, "semeando" na palma de nopal o inseto na fase de reprodução. Volvidas poucas semanas, multiplicada a colheita, uma miríade de cochonilhas era varrida para potes, depois mergulhadas em água quente e seca ao sol. A obtenção de 1 Kg de corante de cochonilha obrigava à secagem de 80 a 100 mil insetos. Milhares de toneladas de corante de cochonilha serviam um comércio e consumo entre os povos nativos da Mesoamérica. Uma opulência de cor à qual não foi alheia a atenção do espanhol Hernán Cortés quando, em 1519, conquistou Tenochtitlán a capital do Império Asteca. O manto do imperador Montezuma exibia-se num vermelho cintilante. Cortés via as semelhanças entre aquela cor e uma outra que a Europa conhecia há séculos, o carmesim, extraído do inseto Kermes vermilio, habitante de várias espécies de Quercus mediterrânicos, como o carvalho. Ao contrário do corante europeu, de baixa resistência à luz solar, o corante americano reagia com fulgor à passagem do tempo.

O magnetismo do vermelho obtido da cochonilha não ofuscou os conquistadores, obcecados com fortuna mais óbvia, a proporcionada pelo ouro e prata. Décadas depois, aberta a porta das Américas a mercadores espanhóis, o país de Cervantes passou a receber toneladas de cochonilha colhida por povos nativos. A produção que em 1557 era de 23 toneladas, passou para perto de 67 toneladas em 1574. Do solo espanhol, o corante irradiava para a restante Europa que indagava sobre a fonte da riqueza e investia em espionagem. Entre os espiões evidenciou-se o botânico francês Nicolas-Joseph Thiéry de Menonville que em 1777, ao serviço da coroa, contrabandeou alguns insetos e catos para Santo Domingo, na República Dominicana. Para seu infortúnio, a cochonilha e o nopal sucumbiram. A cochonilha é caprichosa e fraqueja com a chuva ou mudanças bruscas de temperatura.

O nó urdido pelo mistério por quase 300 anos desenlaçou-se após a Guerra da Independência do México entre 1810 e 1821. A dupla nopal/cochonilha ganhou novos territórios, nomeadamente na Guatemala e nas Ilhas Canárias. Em 1869, um novo corante sintético, a alizarina (antes proveniente da raiz de garança) alcançou escala industrial. De cor mais duradoura e mais barato, destronou a cochonilha e um comércio milionário.

Volvidos perto de 500 anos desde o encontro da Europa com a cochonilha das Américas, o inseto continua a habitar o nosso quotidiano. O belo tom carmim conquistou o seu quinhão como corante natural em iogurtes, bebidas alcoólicas, gelatinas, gelados, enchidos, entre outros. A Dactylopius coccus subsiste no século XXI com o código E120 na lista de aditivos alimentares.

A introdução na Europa da cochinilha americana refreou no século XVI a procura de uma matéria-prima para corante há muito colhida na região mediterrânica, onde parasita em carvalhos o Kermes vermilio. O processo de secagem do inseto produzia um corante carmesim, aplicado em pinturas rupestres no Neolítico. Na Idade Média, a produção de Kermes preponderava no sul de França e sudoeste da Península Ibérica. Labor que exigia mão de obra entregue a uma tarefa lenta. O corante resultante tinha grande procura junto de tintureiros. Tingir uma peça de pano para uma capa poderia exigir até um milhão e meio de insetos.

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