Jorge Soares: "Os cientistas têm de estar conscientes de que o que pesquisam se legitima se for útil à Humanidade"

<em>Limites da Ciência</em> é o tema a debate no ciclo de conferências <em>Desafios da Ciência na Sociedade Contemporânea</em>, organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. A iniciativa decorre <em>online</em>, via Zoom, esta quarta-feira às 18.00 horas. Conta com a presença de Jorge Soares, médico anatomopatologista e professor de Medicina, que foi presidente do Conselho Nacional da Ética para as Ciências da Vida e Diretor da Fundação Calouste Gulbenkian. Atualmente é membro do Comité de Bioética do Conselho da Europa e membro efetivo da Academia das Ciências de Lisboa.
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Averiguar se a ciência tem limites é uma pergunta de há muito. O contexto em que vivemos, neste início de século XXI, apresenta-nos razões específicas para colocar esta questão?
Discutir se a ciência tem limites é uma questão que diria intemporal. Sempre que a ciência nos traz uma nova descoberta, a questão emerge, embora possa ter contornos diferentes. Mas, o peso relativo de certos limites é hoje distinto, o que obriga a reequacionar aqueles limites. Evoluímos muito nas tecnologias, no desenvolvimento de equipamentos, nas formas de medir fenómenos, avançámos enormemente na agilidade e rapidez para cruzar enormes volumes de dados e sabemos da sua importância para o progresso em todos os domínios do conhecimento. Há um sentido de urgência que a construção de vacinas no início da pandemia do covid-19 exemplificou e ninguém falou de limites nessas circunstâncias. A sociedade de hoje vive muito centrada no sucesso e na visibilidade mediática. Isso consegue-se mais facilmente através das novas tecnologias do que da ciência teórica. Este facto cria pressão nos cientistas que podem privilegiar a sua intervenção, mais para aplicar ciência do que para criar ciência nova.

Peter Medawar, Nobel da Medicina, escreveu no seu livro de 1988, Os Limites da Ciência, que não há fronteiras para as possibilidades de realização científica: "A maior glória da ciência implica que tudo o que é possível, em princípio, pode ser feito se a intenção ao fazê-lo for suficientemente determinada e sustentada no tempo". Concorda com esta posição?
Poderei concordar com a ideia que está subjacente, mas não com a sua formulação. É compreensível, porque à altura da publicação do livro, em 1988, o fascínio pelo que se conseguia ainda não se confrontava com princípios e valores aculturados na sociedade. Medawar, nascido brasileiro, teve uma contribuição maior para a ciência médica, ajudando a compreender e a neutralizar as dificuldades que a rejeição de enxertos apresentava, o que abriu caminho à transplantação de órgãos. Medawar quereria passar a mensagem de a determinação e a persistência serem qualidades fundamentais para ultrapassar os reveses da investigação. Os cientistas devem acreditar no que fazem e perseguir essa ideia. Contudo, a história recente ensinou-nos que, em certos domínios, nomeadamente na Biologia que "recria" a natureza humana, não basta "fazer" porque existem as condições para ser feito - isto é: é exequível a experiência, porque temos as metodologias e os equipamentos -, mas incluir na "pergunta científica" se se pode - no sentido se se deve - fazer. Ou seja: concretizar uma ideia confronta-se com obstáculos éticos que não devem ser ultrapassados. O que Medawar chama a "glória da ciência", porventura uma expressão de entusiasmo pelo muito que os seus trabalhos ajudaram a tratar doentes necessitados de substituir órgãos, será mais bem interpretado, quando podemos proporcionar novas informações e conhecimentos que venham a ser úteis à humanidade, mas não colidam com os valores que ao longo dos tempos fomos construindo.

Permita-me apresentar-lhe a questão desta forma, eventualmente um tanto tortuosa e provocatória: se entendermos a ciência como o mecanismo de conhecimento dos fenómenos da natureza e sendo o universo infinito, é lícito afirmarmos que o conhecimento sobre a natureza não tem limites e, consequentemente, não os terá também a ciência. Como comenta?
É legítimo que os cientistas façam profissão de fé na ausência de limites para a atividade a que se dedicam. Há ainda muito a conhecer e a descobrir, sobretudo nos domínios da Biologia, que começou a merecer atenção e a recrutar cultores séculos mais tarde do que a Física, a Astronomia, a Matemática ou a Química. A Biologia lembrou-nos que há uma outra "natureza" que ainda tem muitos problemas a investigar, muitas questões a desvendar, muitas respostas para dar. Falamos da natureza que está dentro de nós, não a que está à nossa volta, a que se consagraram físicos e matemáticos. Teve um valor incalculável descobrir o grau de parentesco entre espécies muito distintas no tempo em que existiram e na complexidade da sua organização enquanto organismos. Sabemos hoje que partilhamos genes - ancestrais - com espécies que estão extintas, o que tem enorme relevância sobre a nossa evolução enquanto seres vivos.

Em 2007, John Horgan, jornalista de ciência norte-americano, autor do livro O Fim da Ciência, visitou o nosso país a propósito da conferência A Ciência Terá Limites?. Horgan afirmou que, no futuro, não são de esperar descobertas científicas revolucionárias. O autor não crê num progresso científico ilimitado, vê-o mesmo como uma anomalia de um passado recente. Como avalia esta posição de Horgan?
John Horgan tinha, e tem, uma visão um tanto pessimista sobre as possibilidades de a ciência nos surpreender com nova informação. Podia lembrar que esse tom pessimista também invadiu a comunidade científica do século XIX, sobretudo nas áreas da Física e da Matemática, que teria já esgotado o que nos podiam dar para entender o mundo natural. O mundo recebeu com algum espanto a Teoria Quântica e a Teoria da Relatividade, que revolucionaram aquelas áreas do conhecimento, com impacto muito grande sobre o progresso científico mais de um século volvido. Na verdade, a ciência tem sempre a grata faculdade de nos surpreender ou porque formula novos caminhos teóricos, proporciona descobertas transformadoras ou porque surgem inesperadas aplicações. No seu pessimismo, o próprio Horgan admitia, numa publicação ulterior, áreas para a ciência explorar: por exemplo, um grande desafio para a Biologia seria descobrir a forma como os neurónios "falam" uns com os outros, o papel das ligações neuroquímicas das redes intercelulares. Decifrar esse "código" pode ser um passo decisivo para compreender problemas epistémicos das neurociências: a consciência, a relação mente-corpo, o livre arbítrio. O código genético parecia inalcançável nos Anos 50 e hoje temos o genoma humano decifrado, um património da Humanidade e uma grande esperança para combater certas doenças. As posições, como a de Horgan, que advogam um certo "esgotamento da ciência" são sempre surpreendidas por descobertas transformadoras, que mudam paradigmas científicos e proporcionam explicações inesperadas.

Existe um limite a partir do qual a ciência tem de ceder o passo à metafísica? Por exemplo na Teoria das Cordas...
Esta é uma área em que grandes considerações da minha parte, que militei sempre na Medicina e na sua companheira "natural", a Biologia, só podem ser tomadas por atrevimento. Tem de reconhecer-se que é uma hipótese intelectual fascinante, colocar a questão se seremos capazes de conseguir formular uma espécie de "Teoria de Tudo"? Trabalhos sobre a Teoria das Cordas, iniciados creio que na década de 60 do século anterior, têm levado a avanços na Matemática moderna, como por exemplo na geometria algébrica; mas a questão nuclear, que seria resolver um modelo unificador da Física e da Matemática, admito que necessite de outros olhares e linguagens fora das ciências exatas. Mas é verdade que não convivemos bem com teorias não-verificáveis, tal como sucede com as leis da natureza não causais, como lembra Freeman Dyson, físico matemático. Muitos dos que argumentam que a ciência está a chegar aos seus limites baseiam-se nestes pressupostos.

Para a sua intervenção na conferência recorre ao pensamento do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein e a posição deste face à inoperância da ciência na sua capacidade de solucionar "os problemas verdadeiramente importantes da existência humana, os que associam dilemas éticos". Que questões éticas impõem um limite inultrapassável à ciência?
Wittgenstein repetidamente afirmou a sua convicção de que a ciência não podia resolver, ou melhor, nunca iria solucionar os problemas verdadeiramente importantes da existência humana, que são os que associam dilemas éticos. Os dilemas éticos colocam-se sobretudo nos domínios da Biologia, muito em especial nas questões associadas ao princípio da vida, à criação de vida e também nas mudanças efetuadas nas nossas células, nos nossos genes. São especialmente críticas alterações experimentais em células reprodutivas, porque essas alterações são transmissíveis, passam para as gerações futuras, sem haver noção dos efeitos que podem nelas ocorrer. Esse foi o erro do investigador chinês que há seis anos causou um enorme sobressalto na comunidade científica, anunciando que tinha concretizado uma intervenção de manipulação genética em células reprodutivas destinada a criar gerações resistentes ao vírus VIH. Nestas situações e outras similares, verifica-se que o debate ético segue (não precede) a descoberta técnico-científica, muitas vezes somente como suporte à produção de legislação destinada a regular aqueles desenvolvimentos. A utilização de tecnologias muito sofisticadas, enquanto produto da ciência, e em que se apoia a chamada indústria da guerra, está geralmente rodeada de grande opacidade e levanta questões muito sérias do âmbito das opções éticas dos governos e das sociedades em geral. É indispensável haver maior escrutínio sobre a aplicação dos fundos públicos para a ciência, com mais transparência e maior envolvimento da sociedade. Mais do que escrutinar a ciência dita pura ou teórica (que tem mecanismos próprios), talvez deva ser mais apertada a avaliação das tecnologias que a ciência proporciona.

Nas notas que preparou para a conferência diz-nos que "a ciência é reconhecidamente frágil face aos ditames do poder". Que alcance têm estas suas palavras?
Reconhece-se haver maior desenvolvimento económico-social em países em que a ciência é mais financiada, e assim adquire maior capacidade de concretizar um poder de intervenção social. Quem distribui financiamento público tem sempre a possibilidade de condicionar as opções de aplicação das verbas concedidas. Isso confere à ciência uma fragilidade face aos interesses do poder político e reduz a liberdade dos investigadores. No mesmo sentido, aceitamos que os privados que investem na ciência pretendem ter retorno com mais-valias do investimento feito. Em ambos os casos, podemos dizer que a ciência é frágil, e a liberdade dos investigadores pode estar condicionada ou mesmo limitada.

George Steiner considerava que um dos principais obstáculos a um progresso científico genuíno pode vir da crescente hiperespecialização dos cientistas, que começa a impossibilitar a comunicação mesmo entre investigadores que trabalham em domínios muito próximos. Concorda?
Steiner é um dos grandes maîtres-à-penser do pensamento contemporâneo, que infelizmente já não nos "ilumina". Steiner não era um grande entusiasta do progresso ilimitado da ciência, e frequentemente expressava um certo ceticismo sobre a prática da ciência em pequenos compartimentos, o que lhe retiraria vigor e criatividade. A fragmentação pode reduzir certas áreas a "minifúndios científicos", uma espécie de "guetos" onde os cientistas se sentem confortáveis, publicam os seus resultados com mais facilidade, mas com limitado valor universal. Essa proliferação de "comunidades científicas" isoladas pode associar o risco de faltar uma linguagem comum. Aliás, a falta de uma linguagem comum foi, no século XIX, [a razão] por que deixou de se usar o latim para a comunicação em ciência, um fator de estagnação, mas só temporário, no avanço da ciência, e que a teoria quântica e a teoria da relatividade rapidamente desmentiram. Há uma visão oposta a esta ideia de Steiner, com a qual me identifico mais: em tempos de acentuado dinamismo das áreas em que exploramos novos conhecimentos, o cruzamento de linguagens diferentes pode ser fertilizante. Há grandes centros de investigação que têm áreas comuns de encontro dos cientistas. Para além de cumprirem o seu papel de convívio e lazer são locais onde germinam ideias, algumas originais e disruptivas. Cientistas com "histórias" e formações diferentes constroem soluções para um problema, que cada um deles isoladamente não conseguiria, o que é, claramente, enriquecedor. Uma mesma pergunta científica pode ser sempre olhada na perspetiva do desenho da resposta por caminhos diferentes. Diria que há agora uma certa tendência, baseada nas boas experiências, de juntar e recombinar disciplinas científicas, por exemplo, a Engenharia Biomédica e a Astrobiologia.

Gostaria que aprofundasse uma das questões que leva à conferência Limites da Ciência: "É antiga a discussão sobre a boa e a má ciência, sendo esta não só o que chamamos de pseudociência, mas também a prática científica que, cumprindo boa metodologia, tem fins que não servem o progresso e o bem-estar da Humanidade".
É antiga a discussão sobre a boa e a má ciência, discussão que adota dois sentidos distintos: um deles tem a ver com a qualidade da própria ciência. Se ela é inovadora, se cumpre princípios canónicos no uso dos métodos, se é séria na apresentação dos resultados, se é sóbria nas conclusões, tratar-se-á de boa ciência; por oposição, a má ciência é uma pseudociência. Mas também há um outro sentido que deve ser atribuído à má ciência, que se não relaciona com a falta de aplicação de princípios da prática científica, mas sim com a finalidade, o propósito final, a aplicação dos conhecimentos que gera. São muitos os exemplos, desde o último século, de aplicações que causaram e continuam a causar um sério dano humanitário e, até mesmo, destruição e morte. Não é por que a ciência seja intrinsecamente má, mas por ser mau o uso que dela se faz, quando ficam esquecidos os princípios e os valores que devem balizar a intervenção dos cientistas e, sobretudo, a aplicação que dos conhecimentos é feita. Os cientistas têm de estar conscientes de que o que pesquisam se legitima se for útil à Humanidade, para lhe proporcionar benefício, para a fazer melhor e não contribuir para a anular ou até eliminar.

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