Ilhas Scilly, o cemitério de navios fotografado por quatro gerações da família Gibson

Numa época em que a fotografia inaugurava um novo mundo na imagem, John Gibson principiou uma saga familiar que perduraria nos 125 anos seguintes. A partir de 1870 e até ao século XX, o registo de naufrágios ao largo das ilhas Scilly, no Reino Unido, tornou-se a obsessão de quatro gerações da mesma família.

Nascida em 1847 na Carolina do Sul, nos Estados Unidos, Susan Dimock completou em Zurique, na Suíça e, mais tarde, na capital austríaca, Viena, o percurso académico em medicina. No início da década de 1870, já no seu país natal, Susan notabilizou-se como pioneira na medicina no feminino. A jovem foi médica residente numa unidade hospitalar na região da Nova Inglaterra, exerceu obstetrícia e ginecologia num consultório particular e empenhou-se, em 1871, na abertura de uma das primeiras escolas de enfermagem dos Estados Unidos. Quatro anos volvidos, a médica e cirurgiã foi notícia de capa no jornal suíço Gazette de Lausanne. A 18 de agosto de 1875, a publicação comunicava a morte de Dimock. Tinha 28 anos. A norte-americana que frequentara com louvor a Universidade de Zurique, sucumbira ao afogamento nas águas ao largo do sudoeste inglês. Susan encontrava-se entre as 372 almas vítimas do afundamento do transatlântico alemão Schiller. O dédalo de rochedos a oeste do pequeno arquipélago britânico de Scilly, ao largo da Cornualha, reivindicava mais um navio. A era dos veleiros, a que se seguiu a dos navios a vapor, serviu uma multidão de afundamentos às traiçoeiras correntes, formações rochosas e clima severo de Scilly. Entre os séculos XIV e XX, centenas de naves naufragaram frente à costa. Por 125 anos, quatro gerações da mesma família documentaram em fotografia mais de 200 naufrágios e respetivas operações de salvamento de passageiros e tripulações.

A 8 de maio de 1875, John Gibson, pioneiro entre os fotógrafos de naufrágios em Scilly, captou em imagem a agonia do navio a vapor alemão de 120 metros de comprimento e com mais de 3.500 toneladas de peso. Abalroado a 7 de maio, o Schiller viu-se fustigado pelo mar severo. Na sua viagem regular entre Nova Iorque e Hamburgo, ao transatlântico cabia-lhe escalar o porto de Plymouth, na costa de Devon. A noite e o nevoeiro congeminaram a armadilha que colheu a embarcação. Tresmalhado da sua rota, o vapor navegou rumo ao recorte granítico de Retarrier Ledges. Às 22h00, o Schiller embateu no rochedo. Ao recuar dos penedos, o capitão do vapor alemão expôs o navio ao mar revolto, com sucessivos embates na fraga. Instalou-se o caos entre os passageiros que tentavam alcançar os botes salva-vidas. Estes, em más condições, revelaram-se uma armadilha mortal para homens, mulheres e crianças. Quando a madrugada emprestou luz ao oceano ao largo de Scilly, contavam-se apenas 37 sobreviventes. Susan Dimock e as duas amigas que a acompanhavam rumo ao velho continente, Caroline Crane e Elizabeth Greene, sucumbiram às águas. Não concretizariam as almejadas férias europeias.

Nas águas e a partir da costa, John Gibson, nascido na Irlanda em 1827, entregou-se à reportagem fotográfica do afundamento do Schiller No manejo da máquina fotográfica, um luxo exótico da era vitoriana, formara John, na década de 1860, os seus dois filhos, Herbert John Gibson e Alexander Gendall Gibson, nascidos do casamento com Sarah Gendall. Após uma infância difícil (John fora para o mar como marinheiro aos 12 anos para equilibrar a renda da loja gerida pela mãe viúva), John instruiu-se na nova tecnologia fotográfica, abriu um modesto estúdio, o Lyonnesse, na ilha de St. Mary, para iniciar a documentação em imagem dos inúmeros naufrágios ocorridos na costa severa de Scilly. Na época, o arquipélago dava à recente arte fotográfica nomes como Francis Mortimer, exímio na captação de imagens de tempestades, embarcações e gente do mar. Por sua vez, Charles King, farmacêutico, devoto da fotografia de aves marinhas, fez das suas imagens motivo de negócio, ao produzir postais fotográficos, vendidos aos milhares.

Em 1870, a chegada do telégrafo ao arquipélago encurtou em cerca de uma semana as comunicações entre Scilly e as restantes Ilhas Britânicas. Para a família Gibson abriu-se a oportunidade de reportar célere, aos jornais da época, notícia das recorrentes tragédias oceânicas. Num esforço físico e intelectual constante, John, Alexander e Herbert, escalavam penhascos, calcorreavam dunas, viajavam de carroça e em botes, carregados de uma câmara escura e de frágeis placas de vidro. Faziam-no numa época inicial da fotografia, cativa de sessões em estúdio. Do olhar atento da família Gibson resultam imagens atmosféricas e fantasmagóricas, tocadas pela virulência dos elementos que documentam, entre muitos outros, os naufrágios dos navios britânicos Minnehaha (1874) e Bay of Panama (1891), do russo Aksai (1874) do norueguês Hansy (1911), do italiano SS Tripolitania (1912), do cipriota MV Poleire (1970) e do alemão MV Cita (1997). Documentação que permitia ao clã Gibson viver com aceitável conforto financeiro. Para as companhias detentoras das embarcações, o registo fotográfico revelou-se uma prova credível junto das seguradoras e generosamente remunerado. Também o turismo crescente, robustecido pelo desenvolvimento dos transportes no decorrer da Revolução Industrial, favoreceu a demanda de visitantes a Scilly e alimentou o gosto na aquisição dos postais com assinatura Gibson.

O legado fotográfico de John encontrou, em 1901, continuidade no trabalho do neto James Gibson, filho de Alexander, exímio fotógrafo, membro da londrina Royal Photographic Society. Ainda na primeira metade do século XX, Frank Gibson, filho de James, abriu uma livraria na ilha natal, apostado na publicação de livros com o legado fotográfico da sua família. Uma saga fotográfica que despertou a atenção de autores como o escritor inglês John Fowles que, em 1974, homenageou o clã Gibson com as seguintes palavras no livro Shipwreck: "outros homens tiraram belas fotos de naufrágios, mas em nenhum outro lugar do mundo uma família produziu um trabalho tão consistentemente elevado e poético".

Em 2013, o Royal Museums Greenwich anunciou a aquisição de parte da coleção de fotografias Gibson, mais de 1.000 negativos em placa de vidro e perto de uma centena de fotografias originais. Entre os itens adquiridos pela instituição britânica encontrava-se o livro de registo das mensagens telegráficas endereçadas pela família de fotógrafos. Volvidos perto de 140 anos sobre o início do trabalho do seu tetravô, Sandra Gibson entregou à instituição museológica sediada em Londres o espólio guardado em caixas de madeira. Com a segunda metade do século XX, o desenvolvimento de meios de orientação oceânica mais sofisticados, aliviou o arquipélago das Scilly da fama de carrasco de embarcações.

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