Praça da Figueira. O ícone de Lisboa que acabou na sucata
"Acabou a Praça da Figueira." Há exatamente 70 anos, o DN titulava assim o fecho de portas de um dos mais icónicos edifícios da capital. A enorme estrutura de ferro, que ocupava todo o espaço central da praça, acabou na sucata. Foi o fim do mercado central de Lisboa que, sob várias formas, ali esteve instalado durante mais de 150 anos.
"Lisboa, primeiro quartel do século XX. Ninguém se pode queixar de que o centro da cidade é um local despovoado. Aqui, cada dia começa antes de o anterior ter terminado", escreve a olisipógrafa Marina Tavares Dias em Lisboa Desaparecida. E continua: "Noite cerrada, madrugada adiante, escuro de breu, inverno ou verão. As carroças descem lentamente a Avenida Almirante Reis, vencidos já os obstáculos dos estreitos acessos à cidade. Trazem molhos de couves, braçadas de flores." A Praça da Figueira é então um centro fervilhante da vida quotidiana da cidade, a "grande babilónia de ferro e vidro", como lhe chamará Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis.
A construção do mercado não foi uma novidade naquele local. Há muito que a Praça da Figueira alojava o mercado central de Lisboa - desde que o terramoto de 1755 reduziu a escombros o Hospital Real de Todos-os-Santos. Este acabaria transferido para a Colina de Santana, para o colégio de Santo Antão (o atual Hospital de São José), que entretanto fora confiscado aos jesuítas.
Lisboa vivia há décadas com o problema da falta de um mercado central, o que fazia multiplicar as vendas ambulantes por cada esquina da cidade. O marquês de Pombal viu ali a solução e, a 23 de novembro de 1775, o terreno da Praça da Figueira foi doado à cidade de Lisboa por decreto régio de D. José. São 380 palmos de norte a sul e 440 palmos de nascente a poente, cedidos sob a condição de ali se concentrarem as vendas de frutas, hortaliças e aves de capoeira. A edificação há de custar ao erário público 10 251 réis.
É assim que nasce na praça (então a Praça da Erva) um mercado a céu aberto, sobre terra batida, que depois dá lugar à construção de pequenas barracas e à escavação de um poço (num lugar onde havia... uma figueira). Ao longo dos anos, aquele espaço - que ainda deu pelo nome de Praça Nova, antes de chegar à designação atual - foi recebendo os melhoramentos trazidos pelo tempo. Em 1834 foi arborizado e foi instalada iluminação, em 1849 foi fechado com grades de ferro. Esta construção haveria de ir abaixo em 1883 e dois anos depois surge o novo mercado, inaugurado com pompa e circunstância, na presença da família real.
O imponente edifício de ferro, cheio de rendilhados, ocupava uma área de oito mil metros quadrados, com três naves e quatro torreões encimados por cúpulas. Ao longo dos 64 anos seguintes transformou a Praça da Figueira num espaço central da cidade, fervilhante de vida. O mercado "cresceu de importância com o correr dos anos, tornando-se um dos pontos mais conhecidos de Lisboa e transformando-lhe o centro numa rica amálgama de cores e costumes", escreve Marina Tavares Dias, evocando as palavras de um "historiador da cidade" (não nomeado) - "o templo sagrado do estômago lisboeta". Um bulício que aumentava exponencialmente nas festas da cidade, com uma romaria dos lisboetas ao mercado que era já uma tradição secular. "Não esquecemos as festas populares que nas vésperas de Santo António e de S. João attraem alli uma multidão immensa em descantes e bailes", escrevia-se em 1884 na revista O Occidente.
O destino da velha Praça da Figueira ficou traçado a 16 de janeiro de 1947 quando o presidente da autarquia, Álvaro da Salvação Barreto, fez aprovar em reunião camarária a demolição do edifício. A cidade dividiu-se: de um lado os que aplaudiam o veredicto, saudado como um sinal de progresso contra um mercado envelhecido, fora de moda, desfasado dos mercados modernos que surgiam noutras capitais europeias (no DN chamava-se à praça um "anacronismo", uma "visão sombria de caixotes e redes de galináceos"); do outro os que pugnavam pela manutenção.
A decisão demorou dois anos a concretizar-se, mas o dia chegou. "Em junho de 1949 as estruturas metálicas do mercado foram finalmente arrematadas em leilão por 830 contos" a um sucateiro do Porto, lê-se em Lisboa Desaparecida. O ex libris da Praça da Figueira fechou portas e foi desmantelado. Na mesma altura, o Socorro e uma parte da baixa Mouraria também desapareciam do mapa da cidade, num plano que visava descongestionar o trânsito e abrir vias maiores naquela zona.
Nas fotografias da época, tiradas do lado do rio, vislumbram-se por cima dos telhados do mercado os últimos dois andares de um prédio. Num deles é visível um toldo branco, que tinha por função proteger do sol as bonecas de massa que ali eram postas a secar - era o Hospital de Bonecas. Estava lá antes de surgir o mercado e por lá continua hoje, no mesmo prédio, agora uns andares abaixo. Manuela Cutileira, hoje a responsável do Hospital de Bonecas, é a neta dos donos de então, que viviam no quinto andar do edifício. Guarda uma memória ténue do mercado de ferro, uma memória remetida a um dia em que, "miúda rebelde e dada a asneiras", atirou um anel de ouro da mãe pela janela do quinto andar e pôs toda a gente em rebuliço lá em baixo à procura da joia.
Manuela Cutileira lembra-se bem melhor do que veio depois - um parque de estacionamento, o metro que chegou à praça nos anos 60, a estátua equestre de D. João I que ali foi colocada em 1971. O comércio na praça, que ocupa praticamente todos os pisos térreos, também foi mudando de figura: "Havia muitas tabernas, algumas espingardarias, lojas de roupa."
Numa das esquinas da Praça da Figueira ainda está uma loja de roupa, de ar antigo, que dá pelo insólito nome de... "o Chocolateiro". Maria João é funcionária da casa há 43 anos, não os suficientes para ter conhecido o antigo mercado, mas conta que o nome do estabelecimento ainda guarda a memória desses tempos - aquela era a esquina onde se vendia chocolate quente e a casa acabou por tomar o nome do pregão que tanto se ouvia à porta e que ali chamava clientes do mercado e feirantes.
Como está atualmente, a Praça da Figueira não deixou de ser um entra e sai, mas agora com características muito particulares. É dali que sai o autocarro para o Castelo, o elétrico que vai para Belém, os autocarros descapotáveis que fazem visitas turísticas pela cidade. Há uma praça de táxis e outra de tuk-tuks. É um local de passagem para quem visita a cidade, um permanente vaivém de turistas. A praça readaptou-se. Há hotéis, um juice bar e uma loja de portuguese shoes, um best home made burguers. A histórica pastelaria Suíça fechou portas no ano passado, à beira do centenário, e todo o quarteirão que faz fronteira para o Rossio - para onde está prometido um hotel - tem seguido o mesmo destino. Sobra a Casa da Sorte, entretanto classificada como uma Loja com História. Mas também ali o destino não parece radioso. "Em tempos tínhamos aqui uma fila de empregados no balcão. Agora basta um", conta o chefe de serviço, Fernando Azevedo. E a julgar pelos clientes que não se veem, não terá muito trabalho. "Dantes, a Casa da Sorte recebia a lotaria à segunda-feira e à quarta estava esgotada. Agora sobra-nos. Quem anda aqui são turistas, os turistas não vêm comprar lotaria", lamenta.
Com entrada tanto para o lado da Praça da Figueira como para o lado da Praça do Rossio, a Casa da Sorte acaba por dar um retrato involuntário da vida das duas praças - praticamente todo o movimento da loja vem do lado do Rossio. Da Praça da Figueira de outrora resta uma pintura na parede do antigo mercado central.