"Porque as tascas também são cultura, não deixem fechar a Casa Cid", pedem clientes
Adão Alberto entrou na Casa Cid no início do ano em que a revolução de abril sairia à rua. Lembra-se bem desse tempo. Tinha 18 anos. Foi um tio que o trouxe da terra, no concelho de São Pedro do Sul, para a capital para trabalhar na restauração e na hotelaria.
"Eu gostava de viver na terra, mas teve que ser", conta deixando denotar ainda o sotaque das beiras. O jovem Adão começou por trabalhar num espaço junto ao Cais da Rocha, depois num outro no Intendente, até que chegou à Casa Cid, uma das tabernas mais típicas da Lisboa antiga, junto ao Mercado da Ribeira. Gostou, tanto que ali está há 46 anos.
Foi ali que viu a sua vida mudar e crescer, casou e foi pai de dois filhos, um rapaz de 25 e uma rapariga de 24, tanto a mulher como os filhos já ali trabalharam para os ajudar. Foi sempre uma casa familiar. Os Cid tinham a família também ali, mas após 12 anos de ali ter entrado, Adão acabou por se tornar no sócio português da família galega.
"Entrava aqui quando calhava e saía sempre quando era necessário. Cheguei a entrar às 03.30 de uma sexta-feira e sair à 01.30 de sábado. Fazia-se o que era preciso. Tanto eu como os outros. Estávamos sempre abertos. Havia muito gente no Mercado que passava aqui para começar o dia ou para acabar ", conta para explicar que "era assim no tempo em que ainda não havia Makro nem outros mercados de abastecimento. Vinha tudo buscar mercadoria à Ribeira. Quando vim para cá chegavam a estar aqui em frente à porta mais de 20 burros e carroças que vinham buscar mercadoria para irem vender nas redondezas."
Na altura, chegavam a estar abertos durante as 24 horas, assim houvesse trabalho, agora abrem por volta das 12.00 e depois é até às 02.00 da manhã. Antes, os primeiros a chegar ao mercado começavam com um copinho de vinho e uma patanisca, depois começaram os vizinhos a ir a beber café. Agora, começam com os almoços e não param.
A Casa Cid já não é só conhecida pelos portugueses. Os turistas também apreciam a ementa tradicional portuguesa que ali encontram. Antes, eram, muitas vezes, os clientes que pediam nos pediam os pratos que queriam para o dia seguinte ou, quando chegavam de manhã, para o almoço. Íamos ao mercado e comprávamos, agora já não pode ser assim. Tem lógica, mas continuamos a trabalhar só com produtos bons e frescos", garante.
Da ementa, continua a fazer parte "o bacalhau assado ou frito, o polvo à lagareiro ou o peixe fresco, sempre do mercado, assado. Ainda hoje um dos pratos era besugo à lagareiro. Já não se encontra muitas casas assim em Lisboa. Agora, é tudo Gourmet".
Adão Alberto chegou como empregado. Trabalhou muitos anos com o filho do fundador, Manuel Cid Nunez, o galego que teve a visão de chegar a Lisboa e de perceber que a abertura de um mercado como o da Ribeira levaria á zona muita gente. "Trabalhei 32 anos com o avô do Borja", diz-nos. Borja Cid, de 37 anos, é o bisneto de Manuel Cid Nunez, que chegou àquela casa em 2017, depois de ter andado pelo mundo e de já ter tido a experiência da alta cozinha. Borja veio para Lisboa depois de aceitar um pedido da mãe e da tia para ficar a gerir o negócio. "É ele que tem estado sempre à frente deste processo. É ele que nos ajuda em tudo e com os clientes estrangeiros, porque eu só falo português".
Adão Alberto orgulha-se de poder dizer que é na Casa Cid que está há 46 anos, orgulha-se de ser das beiras e de nunca ter perdido o sotaque, orgulha-se de ter trabalhado muito e de o continuar a fazer. Ali são como uma família, "o cozinheiro também cá está há 30 anos, os outros empregados há menos tempo, mas todos trabalhamos muito".
O sr. Adão orgulha-se ainda de poder dizer que trabalha há mais de 40 anos na restauração e que sabe bem o que é bom ou não, o que é fresco ou não e o que é bem feito ou não. "Sempre gostei de ir a outros sítios para ver como confecionavam, e posso dizer que hoje há por aí tanta casa que anuncia peixe fresco e não o tem, que diz ter bom bacalhau e também não o tem...é tudo congelado, até faz impressão".
Na Casa Cid, "não é assim". Por isso, do alto do seus 64 anos, diz-nos: "Não queria que isto fechasse. Não é por mim, que eu já posso reformar-me e ir para a terra, mas pela história da casa e por todos os que cá vêm".
Interrompe para dizer a um cliente: "Até para a semana", que lhe responde: "Até parta o mês que vem". "Tanto tempo?", questiona. Volta à conversa: "Está a ver. Nós continuamos a ter clientes portugueses. Hoje, a um sábado, tivemos cinco mesas cheias de portuguesas. Não são só os estrangeiros que cá vêm".
O sócio português da família Cid justifica desta maneira a importância da taberna no Cais do Sodré. "Querem construir um hotel? Construam, nós não incomodamos ninguém. Deixem-nos ficar e até o hotel é mais típico", argumenta.
A Casa Cid tem porta aberta no número 32 da Rua Ribeira Nova desde o início do século XX. Mas o edifício foi comprado há uns dois anos por um fundo de investimento que quer construir um hotel. O projeto ainda não foi aprovado pela câmara e os sócios da Casa Cid, que receberam ordem de despejo até 31 de maio de 2019, altura em que terminava o contrato de arrendamento, não saíram.
Ganharam mais um ano de contrato, mas receiam que depois desta data nada conseguiram fazer. "Sabe, de um lado somos nós, do outro são os gigantes com muito dinheiro".
Para os ajudar, há já uma petição "Não deixem fechar a Casa Cid", que até este sábado tinha reunido quase 2500 assinaturas.
"Mais 100 anos de tasca" é o que pedem os que assinaram a petição, porque "Lisboa precisa de mais torresmos e menos aldrabices gourmet; porque Lisboa quer carapauzinhos fritos, feijoada, dobrada, pataniscas, caldeirada...".