As fake news matam

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No sábado dia 3 de Maio de 2014, Fabiane pegou a bicicleta e saiu de casa, no Guarujá, litoral de São Paulo, para ir buscar a Bíblia que tinha deixado numa igreja que frequentava, em Morrinhos, uma cidade nas imediações. Na véspera, tinha cortado o cabelo pelos ombros e pintado de loiro.

Já em Morrinhos, passou no mercadinho onde a irmã trabalhava e comprou bananas. Ofereceria minutos depois uma delas a uma criança que passava, acompanhada pelos pais.

De repente, sem se aperceber nem como nem porquê, Fabiane foi socada por um rapaz. Depois por outro. Num ápice, estava a ser linchada por dezenas de pessoas, a levar socos, pontapés e pauladas de homens, mulheres e até crianças. Foi amarrada com fios elétricos e arrastada por duas horas pela multidão até acabar caída, inconsciente, num mangue.

Levada para o hospital horas depois, morreria na segunda-feira seguinte, na sequência das agressões. Deixou marido e duas filhas, de 17 e 5 anos, e uma vida de devoção à igreja, em cujos bancos de madeira deixou a Bíblia que não chegou a recuperar.

Fabiane morreu porque os pais da criança a quem deu uma banana a confundiram com o retrato falado de uma mulher, loira de cabelos curtos, acusada pela página de facebook “Guarujá Alerta”, vista e partilhada por 56 mil pessoas, de sequestrar crianças para realizar rituais de magia negra.

Na verdade, Fabiane nem era tão parecida com a mulher do retrato falado publicado pela página “Guarujá Alerta”. E esse retrato dizia respeito a uma pessoa presa no Rio de Janeiro, a 700 quilómetros dali, acusada de um crime sem nenhuma relação com sequestros ou magia negra.

Fabiane foi morta, em 2014, por causa de fake news - dois anos antes da expressão ter entrado no glossário universal, durante a eleição de Donald Trump nos EUA, e quatro antes de se ter tornado o pão nosso de cada dia da campanha brasileira de 2018.

Num só dia, circularam em redes de whatsapp, o novo veículo favorito da estupidez humana, vídeos grosseiramente editados de um vice-presidente de um candidato a aconselhar o voto noutro candidato; tatuagens de Che Guevara acrescentadas de forma obtusa por photoshop ao peito de outra candidata a “vice”; capas toscas de revistas a avisarem os eleitores de burlas nas sondagens e a prepará-los, desde já, para fraudes nas urnas eletrónicas; supostos vídeos de um diretor da Globo demitido a falar de desinformação, quando na verdade aquele senhor não é o diretor da Globo e o verdadeiro nem se demitiu; entre outras boçalidades que é preferível não ajudar a reproduzir.

A divulgação em massa dessas fake news é possível apenas pelo fanatismo e pela ignorância – mais ou menos sinónimos, diga-se de passagem – de quem as consome.

A credibilidade da comunicação social tradicional está em crise, em parte por culpa própria. Mas sobretudo porque as turbas furiosas, ao só quererem ler notícias favoráveis aos extremismos que defendem, trocam a comunicação social séria, a que não divide o mundo em heróis e vilões de novela das 9, pelas bolhas das redes de whatsapp.

Dicas básicas: não aceite entrar num avião pilotado por um amador; não se auto-medique pela internet; não deixe de vacinar os seus filhos por causa de crenças doidas. Tudo isso pode matar. E prefira, apesar de tudo, as notícias assinadas por profissionais em órgãos com décadas de credibilidade. Porque as fake news também podem matar, como mataram Fabiane.

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