Uma compositora à conquista do Met de Nova Iorque
A finlandesa Kaija Saariaho verá amanhã a sua ópera L'amour de loin chegar ao palco do lendário (e conservador) teatro lírico nova-iorquino, 113 anos depois da última mulher a consegui-lo. A direção musical será de outra mulher: Susanna Mälkki, maestrina ligada à Orquestra Gulbenkian, que faz a sua estreia no Met
Apesar da azáfama rodeando a estreia próxima da sua ópera, Kaija Saariaho está a "pairar" por estes dias, em Nova Iorque: "Tem sido muito bonito. Não esperava tantas iniciativas motivadas por esta estreia. Tem sido uma após a outra, por toda a cidade. É tudo muito especial para mim", reconhece. E mais especial se tornou por ter desde há duas semanas a companhia do libretista da ópera, o libanês Amin Maalouf: "É muito raro estarmos juntos numa produção da ópera e desta vez até pudemos ver também La Passion de Simone [oratória sua, também sobre libreto de Maalouf], que foi feita aqui nos dias 19 e 20", conta.
Não é caso de somenos: há 113 anos que uma ópera escrita por uma mulher não subia à cena na Metropolitan Opera de Nova Iorque! E se então a compositora (e famosa sufragista) Ethel Smyth abordou diretamente o chefe do Met em Paris, desafiando-o, agora, foram o mérito de Kaija e o percurso internacional desta ópera que lhe valeram ser programada para uma casa muito conotada com tradicionalismo na programação. E logo com 8 (oito!) récitas! - "É arriscado, certamente, mas também é muito louvável", adianta Kaija - "Espero que todos os eventos que tem havido na cidade à volta da minha obra tragam novos públicos ao Met. Sabe, é que muitas pessoas que gostam da minha música não pensam no Met como um local onde ir, porque tem uma conotação muito tradicionalista. Mas o Teatro está a esforçar-se e até os preços são convidativos [bilhetes desde 27 dólares=25,5 euros!]".
L"amour de loin é provavelmente a ópera contemporânea de maior sucesso: desde a estreia, em 2000, já passou por cerca de duas dúzias de cidades por todo o mundo. Kaija precisa: "sei que já houve dez diferentes produções e a maior parte delas circulou por outras cidades". Declara-se "muito surpreendida" com este sucesso: "nunca imaginei nada como isto!" Um sucesso que a ultrapassa: "pela primeira vez, acho que não vou conseguir assistir a uma nova produção. Será em Brno, na primavera".
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De resto, L'amour..., confessa, "mudou a minha vida, no sentido em que fiquei de repente muito ocupada e com a vida mais difícil de organizar. É que todos os teatros gostam que eu esteja presente quando fazem a ópera e eu própria gosto! Depois, ainda passei a ter mais encomendas, o que é bom, porque posso escolher, mas também é problemático, pois não gosto de recusar pedidos".
O encenador da produção no Met, Robert Lepage, notabilizou-se há alguns anos com uma encenação do Anel do Nibelungo, de Wagner, no mesmo teatro: "acompanho o seu trabalho desde há muito. Chamou-me primeiro a atenção a versão dele do Hamlet, que vi há uns 20 anos em Paris. É um artista que se reinventa constantemente e gosto muito que estejamos finalmente a trabalhar juntos". Da encenação de Lepage para L'amour..., onde pontificam 50 mil luzes LED criando o efeito de mar e da luz do sol sobre ele, Kaija diz apenas que "é muito bonita e extremamente sensível à música". E em relação à estreia, em Québec (2015), desta produção, diz: "agora, no Met, está muito mais detalhada, refinada e elaborada".
Em Nova Iorque, Kaija já fora em 2012 Compositora em Residência no Carnegie Hall e este ano desempenha idênticas "funções" na Mannes School of Music. De resto, a sua relação com os EUA já é longa: "Penso que a minha primeira visita profissional foi em 1988, quando acompanhei o Kronos Quartet na digressão de estreia do meu quarteto de cordas Nymphéa, escrito para eles. Antes disso, tinha vindo, creio que em 1974: o meu pai veio em visita de trabalho cá e trouxe-me para servir de intérprete, pois ele falava pouco inglês...", acrescenta, entre sorrisos.
Inevitável é abordar-se a questão das mulheres compositoras: "Infelizmente, 113 anos depois, o ativismo feminista de Ethel Smyth ainda é necessário, o que só por si é escandaloso! Não me agrada que se "pegue" tanto por aí, agora, porque o que interessa é a Arte e a melhor forma de avançar é trabalharmos o melhor possível. Concedo: hoje, com o reconhecimento que alcancei, não serei a melhor pessoa para dizer até que ponto as mulheres na composição erudita é um problema. Há muitas razões sociológicas para isso, porque é uma estrutura que se manifesta logo desde o Kindergarten. Mas eu vejo as jovens compositoras de hoje e em muitos casos as perspetivas delas são piores do que as que eu tive quando tinha a idade delas: nesse tempo, tudo estava a progredir, a abrir-se, e era para mim evidente que as questões de desigualdade seriam gradualmente resolvidas. Ora atualmente, pelo contrário, assistimos a uma regressão de tudo isso no Ocidente."
Perguntamos-lhe sobre outras compositoras (vivas) que mereceriam o Met: "Assim de repente, não me ocorre. Precisaria investigar - e não serão assim tantas..." Avançamos os nomes de Judith Weir, Unsuk Chin, Olga Neuwirth: "Sim, seriam hipóteses...", diz, após breve reflexão.
L'amour de loin pode ser visto em HD no Grande Auditório da Gulbenkian no próximo dia 10, às 18.00, em transmissão direta. Na Antena 2, a ópera é transmitida nos mesmos data e horário da Gulbenkian.
Os passos de Kaija até atingir a consagração internacional
Nascida em 1952, em Helsínquia, Kaija Saariaho é hoje já uma criadora consagrada. Talvez nunca nenhuma outra mulher tenha alcançado uma posição tão proeminente no concertos dos compositores quanto Kaija, atualmente. Nascida na que será hoje a mais "musical" das nações, a Finlândia (com um ratio de grandes músicos/1000 hab. virtualmente imbatível!), Kaija estudou na famosa Academia Sibelius, prosseguindo-os depois na Alemanha e, a partir de 1982, em Paris, cidade onde se viria a fixar e onde desde então reside.
Foi na capital francesa, mais propriamente no IRCAM (um instituto de investigação nas novas músicas) criado por Pierre Boulez, que se deu a "libertação" de Kaija; foi aí onde ela percebeu que caminhos criativos poderia/iria trilhar, iluminada pelas possibilidades que entreviu na eletrónica em tempo real e na corrente chamada de música espectral.
E esse caminho depressa começou a fazer-se-notar: os anos 90 são já de plena afirmação e reconhecimento, com obras nos mais variados géneros e para as mais variadas formações/combinações - mas ainda não a ópera. Esta surge só quando o Festival de Salzburgo - e logo o Festival dos festivais! - lhe encomenda, na pessoa do então diretor, Gérard Mortier, uma para a edição do ano 2000. E assim nasceria L"amour de loin, encenada e dirigida por americanos, respetivamente, Peter Sellars e Kent Nagano.
A obra foi declarada pelo New York Times como "melhor nova criação musical do ano 2000" e valeria a Kaija o muito prestigiado Prémio Grawemeyer de Composição em 2003 e o Grammy para Melhor Gravação de Ópera em 2011 (outra produção). Desde então, Kaija, além da sua demais produção, vem criando outras obras de pendor dramático, como La Passion de Simone, Adriana Mater, Émilie (que vimos na Gulbenkian em 2013) ou, mais recentemente, Only the Sound Remains, neste caso duas óperas de pequeno formato adaptadas do teatro noh estreadas este ano em Amesterdão.
Kaija é desde 2012 membro da Academia Americana das Artes e das Ciências e recebeu em 2013 o Prémio Polar de Música, um dos mais importantes do mundo.
É casada com o compositor e artista multimédia Jean-Baptiste Barrière, de quem tem dois filhos: Aleksi (27 anos), encenador teatral; e Aliisa, de 21 anos, violinista.
FICHA
L'amour de loin
autor: Kaija Saariaho
libreto: Amin Maalouf, a partir de 'La Vida Breve', relato biográfico do trovador medieval Jaufré Rudel de Blaye
direção musical: Susanna Mälkki
encenação: Robert Lepage
récitas dias 1, 6, 10, 14, 17, 21, 24 e 29
bilhetes desde 27 dólares