Uma Carmen que usa os estereótipos para os fazer em pedaços
De regresso ao palco do São Carlos, a Carmen contou com a presença do presidente Marcelo Rebelo de Sousa no camarote real, razão por que se ouviu A Portuguesa a abrir o espetáculo.
Logo o Prelúdio da ópera deu o sinal para um dos aspectos que se revelariam mais positivos da récita de estreia: a excelente prestação da Sinfónica Portuguesa, dirigida pelo escocês Rory Macdonald - prova de um intenso e, a julgar pelo que se foi vendo da direção de Macdonald, bem orientado trabalho de ensaios. Rory demonstrou saber muito bem o que queria a cada momento tirar desta ópera. E mais: mostrou possuir um apurado sentido do ritmo dramático da obra como um todo. E esta foi outra mais-valia da récita a que assistimos, aliás determinante numa obra como Carmen.
Único pormenor a perturbar essa lisura foi a opção da encenação em deixar de fora grande parte dos diálogos falados. Percebe-se que se queira acrescer à consistência dramática, mas a respiração geral do drama ressente-se um pouco em certos momentos. Mas reconheçamos que esse será um dos poucos pontos não fortes da encenação de Calixto Bieito, aqui reposta por Joan Anton Rechi.
Percebe-se quando Rechi nos dizia que esta encenação tem evoluído (ela já vem de 1999) apenas no sentido de ganhar maior rotundidade. De facto, ela "apresenta-se" hoje a nossos olhos provida de uma qualidade muito enxuta, capaz de transmitir o estritamente essencial e definidor para cada quadro da ópera. Há o estilizado, mas há também o exuberante, sendo que esta última palavra pareceu "acordar" na equipa cénica um desejo irresistível de brincar e/ou desconstruir todos os signos de espanholismo, casticismo ou folclorismo tão associados à obra - intenção que passou literalmente por desmontar! - vide o conhecido touro da Osborne, que preside qual avatar a toda a ópera, antes de cair com estrondo e ser "feito em pedaços" a anteceder o IV ato. Esta orientação basilar tem por óbvio propósito a concentração do espectador no drama de Carmen e Don José, e consegue-o.
A vivê-lo em palco estiveram Justina Gringyte e Lukhanyo Moyake, ela substituindo à última hora Katarina Bradic. Nota-se que Justina conhece bem o papel e conhece bem a encenação, e isso é muito importante. O seu mezzo tem uns graves muito "acontraltados", que ela usa com grande efeito a seu favor, mantendo o brilho do registo agudo, em toda a tessitura sabendo casar emissão e expressividade/intenção dramática. Teve ocasionais deslizes, mas a sua maior "pecha" foi uma tendência para arredondar a articulação do francês. O tenor Lukhanyo Moyake mostrou deter um excelente instrumento, com um só senão: ele ainda não tem a "escola" de tenor francês que Don José exige, que temperasse a italianità evidente do seu tenor spinto. Nicholas Brownlee foi um vocalmente vistoso Escamillo, se bem que cenicamente monocromático. Sarah-Jane Brandon brilhou enquanto Micaëla, sendo de notar que a encenação e, com ela, a orquestra, inflectiam claramente para o puro melodrama nos números cantados pela personagem, o que contrastava com traços de "mulher com vida" inscritos na personagem, distanciando-a do estafado modelo de donzela pura e seráfica. Joana Seara (Frasquita) e Carla Simões (Mercédès) foram bem trabalhadas e funcionaram muito bem juntas, com Joana, contudo, brilhando mais, vocalmente.
O Moralès de Diogo Oliveira assegurou com competência vocal e cénica a 1.ª Cena da ópera. Já em Keel Watson, se tivemos o timbre, não tivemos a ductilidade vocal que se quereria de um Zuniga, nem a capacidade de matizar a emissão para fins expressivos e benefício dramático. Carlos Guilherme foi um discreto Remendado, face à mais forte presença cénica do Dancaïre de Tiago Matos, cuja voz nos agradou.
Última palavra para a bela conjunção luz-cenografia e para a excelente direção de atores-cantores, fosse nas cenas de massas, fosse nas mais intimistas.