Um romance viciado no primeiro lugar
A Rapariga no Comboio, de Paula Hawkins, é o livro que mais vende desde 2015 em Portugal e está na 19ª edição. Releia a entrevista ao DN dada pela autora aquando da edição nacional.
Quando o livro A Rapariga no Comboio foi lançado já se esperava que se tornasse um best-seller, mas nem a autora, Paula Hawkins, imaginava a dimensão do sucesso do seu primeiro thriller, principalmente após ter escrito cinco outros sob pseudónimo que passaram quase despercebidos.
Em entrevista ao DN em junho do ano passado, Paula Hawkins foi muito direta quando se lhe perguntou se esperava este sucesso: "Não, nem pensar. Estava muito otimista, acreditava que poderia correr bem porque sentia que tinha feito um bom trabalho e a minha agente gostara. O que jamais desconfiaria era poder vender tantos exemplares de um dia para o outro." Assim foi, os meses foram passando após a entrevista e o que aconteceu foi que o fenómeno A Rapariga no Comboio não perdeu velocidade nem ficou perdido numa estação qualquer. Pelo contrário, já vendeu cinco milhões de exemplares em todo o mundo.
Portugal não foge ao fenómeno editorial que transformou Paula Hawkins numa autora disputada para ser traduzida em dezenas de países, nem Hollywood se esqueceu dela, pois teve a adaptação do romance que estreia amanhã realizada pela DreamWorks. Um filme estranho no primeiro terço, mas que galopa nos outros dois terços de forma enervante para os espectadores. Com uma ótima representação por parte das três atrizes femininas, talvez melhor compreendida por quem já leu o livro.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
E não faltam leitores portugueses que já o devoraram - este é o verbo mais correto -, afinal poucos são os títulos que têm uma vida tão longa como este nas livrarias portuguesas, pois tanto está no topo da tabela de vendas nacional de ficção como anda a passear-se pelos primeiros dez lugares.
Feitas as contas às edições de A Rapariga no Comboio, o total é de dezanove. Reimpressões que somam mais de cem mil exemplares - 105 mais concretamente -, o que é coisa rara no mercado português. Ou seja, é o livro continuadamente mais vendido em Portugal desde 2015.
Qual é o segredo deste thriller? Voltemos à conversa com a autora, quando ainda "só" tinha vendido dois milhões de exemplares em quatro meses. Hawkins aponta como razão o facto de ter escrito algo diferente do que existe na literatura deste género: "Não pretendia escrever uma história com um crime em que a violência conjugal estivesse ausente. Podemos escrever sobre espiões, mas prefiro fazê-lo sobre pessoas que podiam ser nossos vizinhos, que encontramos todos os dias no comboio mas nunca pensaríamos terem vidas diferentes." É esse o clique deste livro", que deu bastante trabalho à autora, como refere: "Foi preciso fazer um grande esforço na escrita para manter o ritmo."
"É mau as mulheres colocarem num homem a esperança de serem felizes"
(entrevista completa a Paula Hawkins publicada no DN a 10 de junho 2015)
Para quem escreve um romance tétrico que deixa o leitor enervado, Paula Hawkins é bem diferente à conversa. Ri muito, ri quase sempre antes de responder. É muito rápida a falar, quase tão veloz como a trama do seu livro. Será o nervoso miudinho de quem é capaz de matar, alcoolizar, bater e trair na maioria das 300 páginas de A Rapariga no Comboio? Um thriller como há muito tempo não se lia, que pisca o olho ao leitor feminino, e que confirma as frases elogiosas que vêm na contracapa, como a de Stephen King a garantir que ficou acordado até acabar de ler o livro.
A autora desconhecida até ao dia 15 de janeiro, quando lançou o livro, nasceu no Zimbabwe há mais ou menos 40 anos - a biografia oficial ignora o pormenor - e foi jornalista na área financeira durante 15 anos: "Era o meu plano desde a adolescência: ser correspondente estrangeira e viajar pelo mundo. Infelizmente, a crise de 2008 acabou com o projeto."
Perdeu o jornalismo, ganhou o livro, mesmo que só após alguns anos a escrever romances fracassados sob pseudónimo. Quando Hawkins estava tão falida como o resto do mundo, decidiu passar a livro a própria realidade. O pai emprestou- l he dinheiro e durante quatro meses a desconhecida escreveu um thriller em que a protagonista anda de comboio entre a casa nos arredores e o emprego em Londres. Cansada da rotina, entre um e outro copinho de branco à socapa no próprio comboio, Rachel inveja as famílias felizes que habitam as casas que vê desde a janela da carruagem. Até que um dia a notícia do desaparecimento de uma mulher que observava todos os dias no trajeto vem abalar a sua vida e reavivar os fantasmas...
A partir daqui não se conta mais nada, até porque é preciso chegar à página 268 para se ter o vislumbre do que até aí o leitor andava a tentar descobrir. Paula Hawkins consegue agarrar o leitor pelos colarinhos e obrigá- lo a ler de um vez só este A Rapariga no Comboio. Um romance que teve edição imediata nos Estados Unidos, onde os 40 mil exemplares previstos passaram a meio milhão. O sucesso tem sido tão grande em todos os países onde está a ser publicado que a DreamWorks já comprou os direitos para o cinema. É caso para dizer que se se atrasar a ler o livro, o melhor é ir ver o filme.
Parece que estamos perante Darth Vader em vez de uma escritora, de tão possuída que está pelo lado negro das pessoas. É o que sente?
[Risos] É verdade que me interessa o lado negro do carácter das pessoas e apresento-o neste livro de uma forma desagradável. Quis apanhar as facetas das suas vidas em que são fracas, manipuladas ou estão com medo e desesperadas. Esse é o lado da sociedade que me interessa.
Não se censura quando está a ir longe de mais na escrita?
[Risos] Nem por isso, é mais o editor que tem receio. Ele é que me pede para fazer certas alterações e suavizar partes. Concordo que às vezes é muito negro, mas é a realidade.
A imagem que dá de Londres e dos arredores é a de uma cidade de bebedores furiosos. É mesmo assim?
Penso que há demasiadas pessoas a beber muito. Nem é preciso procurar, estão nas ruas. Pode pensar-se que faz parte do comportamento britânico, mas já deixou de ter graça porque isso é o que se poderia esperar dos sem-abrigo e não de pessoas normais, com empregos e vidas normais.
Mais que um thriller, é um retrato?
Sim, até porque não pretendia escrever uma história com um crime em que certas características estivessem ausentes, como é o caso da violência conjugal.
Ou seja, a protagonista não é uma figura difícil de se encontrar?!
Concordo. Rachel tem uma vida normal, só que a dado momento altera a forma de ser, perde o emprego e fica em má situação. Se a encontrássemos na rua, poderia pensar-se que seria uma pessoa normal. Quero escrever sobre pessoas que poderiam ser qualquer um de nós.
Gosta de escrever sobre essa gente!
Sim. Podemos escrever sobre espiões mas prefiro fazê-lo sobre pessoas que podiam ser nossos vizinhos, que encontramos todos os dias no comboio mas nunca pensaríamos terem vidas diferentes.
Agora, o jornalismo e os pseudónimos são coisa do passado?
Creio que essa é uma página totalmente virada. É claro que nunca se pode dizer nunca, principalmente nesta época de crise.
Acha que pode destruir uma carreira fulgurante com o novo livro?
[Risos] Já o estou a escrever, mesmo que as solicitações por causa deste quase o proíbam. Espero dedicar-me a ele a sério no verão.
Há outra narradora feminina?
Sim. É um thriller psicológico também, mas um pouco diferente. Gostaria de o estar a escrever em paz, só que nada mais é igual devido à pressão e à alta expectativa. Antes, os leitores não me conheciam. Não quero desiludir.
O livro só chegou às livrarias a 15 de janeiro...
... Sim, é verdade.
Já vendeu mais de dois milhões...
... Sim.
Esperava por este sucesso...
... Não, nem pensar. Estava muito otimista, acreditava que poderia correr bem porque sentia que tinha feito um bom trabalho e a minha agente gostara. O que jamais desconfiaria era poder vender tantos exemplares de um dia para o outro.
O leitor não consegue parar. Foi difícil manter este suspense ao longo de todo o romance?
Foi preciso fazer um grande esforço para manter esse ritmo. Na primeira metade foi mais fácil acelerar o livro, mas na segunda tive de me esforçar muito mais porque estava desigual. É preciso trabalhar certas partes de modo a obrigar o leitor a virar as páginas e a ler o capítulo que se segue ou falhámos.
Como faz para manter a tensão?
Não é fácil manter o leitor agarrado ao livro. Há que ser capaz de pressionar e suavizar a curiosidade alternadamente e fazê-lo muitas vezes precisa de muita reescrita.
Este é um bom livro para ler numa viagem de comboio?
[Risos] Sim, porque é um bom livro.
Está ciente de que alterou as viagens de comboio e que muitos dos passageiros ficam a procurar indícios criminais enquanto viajam?
Isso não será difícil, até porque a maioria das pessoas suspeita dos próprios vizinhos.
Percebe-se que não tem boa opinião sobre o trabalho da polícia.
Não serei muito favorável na descrição que faço deles neste livro, mas precisava que fossem assim.
É um romance de mulheres más e homens maus. Inexistir uma história de amor não é problema?
Não, porque este livro é sobre a desintegração das relações entre os casais. Talvez num próximo possa escrever sobre coisas mais felizes.
Antes um sucesso precisava de uma paixão forte em vez de casos extraconjugais. Esta é a receita atual mais certa para um sucesso?
[Risos] Não sei se agora as pessoas querem ler livros românticos ou se não estão mais interessadas no que acontece dentro de quatro paredes. Talvez até porque têm-se lido demasiadas comédias românticas e o lado negro tornou-se uma dimensão mais desafiadora.
Se não fosse uma mulher escritora pintava o casamento como um inferno como faz neste romance?
[Risos] Não sei... Acho que os homens também pintam os seus livros com casamentos muito infelizes. O que quero mostrar é que quando as mulheres ficam sem perspetivas e aceitam tornar-se muito dependentes, então as relações ficam sem uma passagem para a felicidade. É mau as mulheres colocarem num homem toda a esperança para serem felizes ou para estarem emocionalmente bem, também precisam de estar bem financeiramente.
Ser mãe é fundamental no livro. Se fosse um homem a escrever teria uma visão diferente?
Suponho que a dada altura, lá pela viragem dos 20 para os 30, os homens começam a tomar decisões sem ter em conta os filhos e não pensam em como isso vai afetar as relações. Já as mulheres começam a ver as amigas serem mães e leem no jornal que a partir de uma certa idade é muito tarde para ter filhos. Isso consome-as porque querem ter os seus próprios brinquedos mas também uma vida social e profissional. O problema é que os homens e as mulheres não olham para os filhos da mesma forma.
Uma das personagens diz que não se pode acreditar em tudo o que os jornais publicam. Acredita no que as críticas dizem do seu livro?
[Risos] Tenho lido uma boa quantidade de recensões nos jornais mas não as vejo todas porque não tenho assim tanto tempo livre.
Vem de uma digressão americana. É um leitor melhor que o inglês?
Não tenho forma de comparar porque nunca fiz uma digressão em Inglaterra. Como nos Estados Unidos é tudo desconhecido, fiquei muito entusiasmada com tudo o que aconteceu. Foi fantástico.
O sucesso nos Estados Unidos é mais importante que o britânico?
Não, não penso isso. Sei que os autores ficam sempre impressionados com o sucesso na América, porque é muito difícil tê-lo se não se for americano. Mas não é o importante para mim, mesmo que as vendas sejam bastante elevadas.
Que autores a inspiram?
Falta tempo para ler. Destaco Cormac McCarthy, Henning Mankell, Tana French e Gillian Flynn.
Referiu Flynn, com quem é muitas vezes relacionada e comparada...
Para a mim é elogioso porque gosto dela, mas os nossos livros são muito diferentes e nada parecidos como dizem com demasiada facilidade.
Beneficia-se da atração dos editores em relação a mulheres que escrevem crime psicológico?
Sim, creio que há uma identificação entre leitores por este tipo de livros e isso ajuda. No entanto, nunca se deve escrever sobre o que está na moda porque o filão acaba.
Mostrou o original ainda meio escrito à sua agente. Porque o fez?
Precisava de dinheiro. Estava numa situação complicada e necessitava de um livro que permitisse ser um bom negócio. Escrevi metade e entreguei à agente; os editores entusiasmaram-se e recebi logo adiantamentos. Foi ótimo.
Foi logo sucesso, enquanto os outros não. Qual foi o segredo?
Era uma história em que estava mais envolvida, em que era mesmo eu. O leitor sente isso.
Gosta de ser conhecida como escritora de crime?
[Risos] Não penso que vá ser sempre este género de escritora, mas de momento não me importo nada.
Dizem que é a Alfred Hitchcock da nova geração...
[Risos] Sim, é verdade e isso faz-me muito feliz.