Tudo o que os animais fazem quando viramos as costas
Se tem um ou mais animais domésticos, provavelmente já se questionou acerca do que farão em casa durante a sua ausência - sobretudo quando, à chegada, não existem indícios de travessuras. Por mais que os manuais especializados procurem instruir-nos na matéria complexa que é o comportamento da bicharada, há, de facto, um imaginário em potência no estado temporário de solidão.
Pois bem, aproveitando a página em branco, foi a esse cenário virtual e figurado que se agarraram três argumentistas (Cinco Paul, Ken Daurio e Brian Lynch), num filme com a assinatura de um dos realizadores de Gru - O Maldisposto, Chris Renaud, ao lado do estreante Yarrow Cheney. O título é A Vida Secreta dos Nossos Bichos, e chega esta quinta-feira às salas portuguesas (acompanhado de um autêntico rebuçado amarelo a iniciar as sessões: a curta-metragem Mower Minions).
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Não deixa de ser interessante que esta curiosidade básica, acomodada no cartaz como isco para todos aqueles que têm animais, esteja na origem do próprio projeto, quando, no verão de 2012, o fundador e CEO da Illumination Entertainment (a produtora de Gru e Mínimos), Chris Meledandri, perguntou a Renaud se alguma vez tinha pensado em realizar um filme a partir da interrogação do que fazem os bichos assim que os donos batem a porta para ir às suas vidas...
Uma odisseia animal
Embora possa soar a uma qualquer apropriação de Toy Story - e a nossa memória não o evita - a verdade é que há aqui uma abordagem muito concreta sobre o universo proposto. Vejamos, temos uma ideia das características dos animais, a fim de os poder representar, ao passo que o comportamento dos brinquedos são pura substância ficcional. Acima de tudo, importa perceber se é possível encontrar resposta a essa pergunta mestra e primordial: o que é que acontece no sossego do lar?
A Vida Secreta dos Nossos Bichos começa por enquadrar Max, um simpático Terrier, e a sua dona, Katie, numa idílica convivência, entre passeios de bicicleta, brincadeiras, mimos e o conforto de um apartamento em Manhattan - até ao dia em que Duke, um gigantesco rafeiro peludo, entra pela porta e lhe é apresentado como seu "irmão"... A partir daí, a guerra está declarada no interior das quatro paredes, e rapidamente passa para a rua, onde os dois se vão perder e acabar por enfrentar os perigos da grande cidade, que começam na carrinha branca que anda a recolher cães vadios e acabam num grupo de animais odiosos, em vias de organizar uma revolução contra os humanos que os abandonaram.
Quem lidera esta trupe? Um adorável coelhinho branco, que em fração de segundos transforma a expressão facial na do mais temível vilão (recorda-se do coelho branco assassino de Monty Python e o Cálice Sagrado? Terá sido inspirado nele). Sim, A Vida Secreta dos Nossos Bichos leva-nos também ao lado negro, às forças nocivas do submundo, expondo a vulnerabilidade da dupla doméstica Duke e Max, qual Bucha e Estica que, esquecendo divergências comezinhas, procuram voltar para casa.
Entretanto, os múltiplos amigos de Max, do prédio e das redondezas, alertados sobre o seu desaparecimento - pela cadelinha apaixonada que todos os dias o observa da janela - juntam-se à odisseia animal, numa busca que inflama ainda mais a ação desenfreada do filme.
E é neste ponto que se percebe como qualquer coisa da essência ficou perdida pelo meio. A Vida Secreta... não se deixou ficar pelo apartamento (com uma fantástica vista nova-iorquina), que por ventura daria uma história mais criativa, jogando com as limitações do espaço, e com aquilo que, realisticamente, poderia acontecer quando os animais estão fora da vigilância dos donos. Pelo contrário, seguiu a tendência profusa de recentes animações, como Zootrópolis e À Procura de Dory, que têm feito as delícias das bilheteiras (já arrecadou mais de 400 milhões de dólares em receitas por todo o mundo), contribuindo para colocar as coproduções Illumination Entertainment e Universal Pictures num cada vez mais vantajoso patamar competitivo em relação à Disney e Pixar.
Contudo, apesar do excesso de energia, o início de A Vida Secreta dos Nossos Bichos é notável... faz-se de pequenas paragens que constroem deliciosas piadas, em vários apartamentos, como um cão-salsicha a massajar-se nos ganchos de uma batedeira elétrica, um pássaro a ligar a ventoinha e deixar-se imergir na paisagem lúdica do ecrã de televisão, ou um caniche que, farto de ouvir música clássica enquanto o dono está em casa, carrega no botão do heavy metal assim que ele fecha a porta.
E por falar em opções musicais, a banda sonora de Alexandre Desplat não poderia constituir um melhor argumento artístico, criando, para o efeito, um clima urbano, jazzístico, que sustém a, por vezes frágil, arquitetura narrativa. O resultado deleita pequenos e graúdos.
Agora o inevitável: já está a ser preparada uma sequela, dirigida novamente por Chris Renaud, com lançamento previsto para o verão de 2018. Esperemos que a ideia não seja só engordar as peripécias.