Todos os álbuns da família que Lourdes Castro escolheu

É a primeira vez que os 36 Álbuns de Família da artista são mostrados na íntegra. Até janeiro, estão na Culturgest, em Lisboa
Publicado a
Atualizado a

Quem sabe da existência dos Álbuns de Família de Lourdes Castro, que a artista vai completando desde os anos 1960, sabe que a esta hora (seja ela qual for) ela poderá estar a colar algo no último deles em sua casa, no Caniço, ilha da Madeira. Imaginamo-la então sentada a uma mesa, a recortar um poema de Sophia de Mello Breyner, um haiku de Ryokan, uma ilustração de um livro infantil, uma publicidade, um excerto de Goethe, um postal que recebeu de um amigo, como José Tolentino Mendonça, que lhe escrevia de Roma.

Entre todos eles há um elemento sempre comum, como o nome ou um traço que caracterizasse cada elemento de uma mesma família: há sombras. E comprovamo-lo através da viagem pelos 36 álbuns de Lourdes, nunca antes mostrados na íntegra, e que agora enchem uma longa vitrina na Culturgest, em Lisboa.

"Isto é construído à imagem dos álbuns de família que todos nós conhecemos, com as fotografias dos filhos, dos tios, um casamento, a criancinha a brincar na praia... Mas há aqui uma construção que não é a dos álbuns de família. Qual é a família a que a Lourdes está a aludir ao chamar a estes livros Álbuns de Família? São as sombras. É a sua família eletiva, de eleição", explica Miguel Wandschneider, curador da mostra Lourdes Castro - Os Meus Álbuns de Família Um a Um.

Os cadernos, que entram "em andamento em 1963, quando a Lourdes centra o seu trabalho no motivo da sombra", afirma Wandschneider, haviam sido mostrados em Serralves, em 2010, numa retrospetiva do trabalho da artista. Mas para o curador (cujo apelido vem de um alemão que no século XIX trocou Hamburgo por Portugal), nunca foram realmente vistos, pois estavam como que congelados em duplas folhas. É por isso que, agora, todas as manhãs Miguel passa pela galeria da exposição, abre a vitrina que guarda os cadernos e vira a página a cada um dos 36. Tal significa que o espectador nunca encontrará, em dias diferentes, a mesma página em cada um dos álbuns. Além disso, no fundo da sala é projetado um vídeo onde duas mãos (são as do curador, mais uma vez) folheiam na íntegra cada um dos álbuns ao longo de cerca de dez horas.

Uma chave para a obra da artista

"Os Álbuns de Família contêm o mundo inteiro. Aparecem imensas imagens e referências do campo da arte e da história da arte, da literatura, da poesia, da filosofia, da ciência, de tempos históricos muito diferentes, e a Lourdes vai canalizando tudo isso, associando, sequenciando nos álbuns", diz o curador.

Essa abundância que transparece ao longo das 90 páginas de cada um dos álbuns contrasta profundamente com a economia das obras de Lourdes: dos recortes em plexiglas (o primeiro foi a sombra da sua mãe, recorda Wandschneider), aos lençóis em que bordou sombras ou ao teatros de sombras que fez com Manuel Zimbro, seu companheiro de vida, que morreu em 2003.

"Percebe-se que o trabalho da Lourdes, na sua depuração, no seu despojamento, e economia de meios, contém o mundo inteiro. Os Álbuns de Família são um documento do mundo da Lourdes, que é depois incorporado no trabalho todo", afirma o curador que foi, ele mesmo, com Mário Valente, que trabalhou com ele nesta exposição, buscar os álbuns à ilha onde Lourdes nasceu em 1930.

Foram à casa que, diz Miguel, deverá ser responsável pelo hiato de "pelo menos cinco anos" que há nos álbuns. "Eu ainda não perguntei à Lourdes, mas quero perguntar. É que coincide com o período em que a Lourdes e o Manuel Zimbro estão a construir a sua casa no Caniço."

Se espreitarmos os postais que os amigos de Lourdes lhe enviam e que ela cola naqueles cadernos, percebemos como a sombra era um tema comum entre eles. "Referem-se às sombras, lembram-se da Lourdes por causa das sombras, por causa de uma imagem que viram e que lhe enviam", acrescenta Miguel Wandschneider, que em fevereiro se demitiu do cargo de programador de artes plásticas da Culturgest, mas que permanecerá na instituição até fechar a sua programação, em fevereiro de 2017. Delfim Sardo, que o substituiu, "já está a trabalhar na sua programação, que arranca em maio" e o testemunho já está a ser passado. "Vou sair daqui com a loja fechada. Mas não saio sem fazer uma conferência, uma reflexão", informa.

Antes disso, e até 8 janeiro do próximo ano, Wandschneider irá, de terça-feira a domingo, folhear cada um dos 36 cadernos. Lourdes Castro não estará em Lisboa para ver a sua família exposta assim, aos olhos de todos, mas vai sabendo do que se passa através de telefonemas entre a capital e a ilha onde vai completando mais um dos seus Álbuns de Família.

Lourdes Castro - Os meus álbuns de Família um a um

Até 8 de janeiro na Culturgest, em Lisboa.

Bilhetes: 2euros (para todas as exposições) e entrada gratuita aos domingos

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt