Só Leonard Cohen enfrenta a morte a cantar
Soa a despedida, não tanto pela idade do canadiano que se mostrou ao mundo das canções há quase meio século (Songs of Leonard Cohen, 1967) mas pelos sinais dos seus versos. O refrão do tema-título de You Want It Darker, por exemplo, em que o homem contradiz, num instante, todas as reticências que a Fé e a figura divina lhe levantam ao longo de quase toda canção - chegado ao bloco central, o cantor diz "estou aqui", em hebreu, e acrescenta "estou pronto, meu Senhor". Passadas três canções, o tom de partida regressa: em Leaving the Table, os dois primeiros versos dizem, cruamente, "estou a levantar-me da mesa, estou fora do jogo". Se bem que, nesse caso, pareça estar em causa um adeus a um amor, a uma paixão, de que agora não sente necessidade.
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O peso natural para um octogenário, cansado dos anos recentes, em que parece não ter abandonado o palco, ou apenas mais um golpe de ironia para mais tarde desmentir? Os mais prevenidos poderão recordar aos mais assustadiços que foi há quase quatro décadas que Cohen proclamou, em disco próprio, a "morte do homem que gostava de mulheres", se quisermos aproveitar Truffaut e um filme curiosamente estreado no mesmo ano (1977) - Death of A Ladies" Man. E, no entanto, virados todos os ventos, cruzadas todas as marés, inspiradas todas as luas, Cohen continua a mover-se...
A edição deste décimo quarto disco de temas originais (e perdoa-se tudo a este autor "de cabeceira", até o anúncio de nove canções novas quando, em boa verdade, são oito e uma reprise...) coincide com o fenómeno/escândalo Dylan/Nobel. Como se este nativo de Westmont dispusesse de dons de adivinhação e oferecesse, desta forma, mais um argumento categórico em defesa do estatuto maior da poesia cantada. Cientes dos talentos de Leonard Cohen, não chegaremos tão longe. Mas o facto é que, mais uma vez, os poemas que compõem este álbum podem ser consumidos sem música que, mesmo com o tratamento melódico e rítmico linear, exemplar e sempre empenhado em deixar espaço à voz e às palavras, ganham dimensão própria.
De resto, aí está um exercício que se recomenda aos mais céticos: deixem o CD em repouso, peguem no livrinho e leiam em voz alta o que Cohen escreveu em Traveling Light, em On the Level e, talvez acima de tudo o resto, em Treaty. Claro que, abordadas assim, as criações de Leonard perdem irremediavelmente os "complementos circunstanciais" de brilho - as guitarras de Bill Bottrell, um violino, um violoncelo, um bouzouki, os coros (e alguns parecem fundar raízes na música sacra) que contrastam com a voz cada vez mais "cavernosa" (sim, também pode ser um elogio...) do protagonista, os sublinhados de um mellotron ou de um piano elétrico, a presença sempre aconchegante de um velhinho órgão Hammond B3. Felizmente, não se torna indispensável optar, valendo muito mais a pena somar.
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Mestre da assiduidade
A edição de You Want It Darker permite a Leonard Cohen um recorde assinalável, sobretudo por se consumar já depois dos seus 80 anos: nunca os seus álbuns foram apresentados em ciclos tão curtos como aqueles que separaram Old Ideas (2012) de Popular Problems (2014), e este do disco que agora nos é disponibilizado. Se a catadupa de concertos assumida nos últimos anos se ficou a dever à necessidade de recuperar as finanças, depois de um desfalque de milhões de dólares cometido pela antiga agente, considerada "da família", o mesmo não serve para justificar esta "batalha da produção" travada por um homem que nunca se deixou pressionar - basta recordar os nove anos decorridos entre The Future (1992) e Ten New Songs (2001) ou os oito que separaram Dear Heather (2004) de Old Ideas. Este "acerto de contas" encosta-se a uma outra urgência, porventura mais íntima - Cohen não quer deixar nada por dizer.
Desta vez, terá sido o filho (e produtor), Adam, a mexer os cordelinhos para levar o pai de volta aos estúdios de gravação. O resultado é, insiste-se, um disco de tons escuros, de ansiedades expostas, de uma serenidade que entra em cena por já não haver outro remédio. Não havia cores tão carregadas desde o manifesto que foi Songs of Love and Hate, lançado bem lá atrás, em 1971.
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Cohen compõe três das melodias, Sharon Robinson colabora com a de On the Level, Adam Cohen está na parceria de Traveling Light, mas há uma figura que se destaca: Patrick Leonard. Um músico e produtor que confirma uma versatilidade difícil de adivinhar: há 30 anos, era o "maestro" que ajudava Madonna a fazer-se gente e, depois disso, andou de braço dado com Bryan Ferry, os Pink Floyd e Roger Waters, Bon Jovi, Jewel, Elton John, até chegar à esfera de influência de Leonard Cohen, com quem assina aqui o terceiro andamento de cooperação. Definitivamente, a lei das probabilidades não se aplica no mundo da música, até porque se percebe que as bases da contenção, a opção pelos mínimos exigíveis, nascem do seu talento para perceber o tipo de edifício que deveria albergar estas canções - tão despido quanto possível. O que não impede outra surpresa: anuncia-se para breve a edição de uma mistura de dança da canção You Want It Darker. Aceitam-se palpites sobre o desfecho...
De volta ao começo: este álbum, que merece toda a atenção e cuja joia da coroa é mesmo Treaty, soa a despedida. Oxalá as aparências iludam.