"Se tomasse antidepressivos, Van Gogh acabava como artista"
Zonas obscuras, eis uma expressão usada pelo filósofo nascido em Moçambique há 76 anos, para falar do misterioso fenómeno da criação artística. Ao longo do festival, que termina no domingo, são exibidos filmes sobre artistas - como Ludwig, de Visconti, ou Lilith de Ribert Rossen, a imagem do cartaz. No Simpósio, os artistas vão testemunhar o que vivem ao lado de especialistas que têm refletido sobre este tema. "Vamos ficar um bocado bêbedos, com três dias de impregnação dessa problemática", prevê o curador do simpósio, o filósofo e ensaísta José Gil.
Relacionamos quase intuitivamente a criação artística com a loucura. O que há de verdade nesta relação da criatividade com um estado não normal, se é que existe o normal?
É uma antiga historia que vem já da Grécia Antiga mas que foi sobretudo acentuada no Romantismo. A ideia de que a criação implica uma inspiração dos deuses e uma saída da normalidade é antiga. E tem uma verdade interna, com certeza.
Para preparar o simpósio, também falou com artistas?
Tenho falado com artistas mas não para estudar isto, se esse estudo é recente. Li muito e numa perspetiva de colocar questões: como, porquê? Por que há esta relação entre desvio psíquico, desvio do comportamento na sociedade, do estatuto do artista relativamente ao homem comum, e por que possibilita a criação.
E porquê?
Há uma relação entre a criação e essa perturbação psíquica, para não dizer loucura, mas há toda uma série de graus. A grande loucura pode levar ao desastre e pode levar à grande criação. E há pequeninas loucuras que levam talvez a obras menos importantes. Há aí uma relação primeira que é a criação da obra nova, singular. Se o criador se mantiver na ordem estabelecida, vai repetir cânones, fórmulas habituais e conhecidas, e não há nada de fundamentalmente novo. Há sempre novo numa obra de arte, mas nesse caso não há criação de uma linguagem nova, pictural ou literária, por exemplo. Se há grandes desvios é sinal de que houve ao mesmo tempo uma grande limpeza, uma grande varridela nos mecanismos e no espaço de criação do artista. O que lá estava estabelecido, estratificado, os padrões, os cânones, tudo isso é varrido.
Não fica como estrutura?
Não fica como fator determinante. Fica sempre qualquer coisa e é contra isso que o artista luta, mas já tem mais força para inventar em relação ao constrangimento das formas antigas.
Com a medicação dada para normalizar as pessoas que têm problemas, não há o risco de tudo isso ser afastado?
Claro que há.
O Van Gogh a tomar antidepressivos, por exemplo?
Se tomasse antidepressivos, acabava o Van Gogh como artista, com certeza. Mas também a terapia em geral pode ser um fator de abolição. Estou a lembrar-me da reação do Freud quando lhe propuseram que o Rilke fosse psicanalisado. Ele disse: Não, se ele é psicanalisado acaba-se-lhe o poder de criação, possivelmente. O Freud não quis ir por aí nem incentivar o Rilke a fazer uma psicanálise. Isso já é antigo. Não é só por causa da existência de tanto neuroléptico, tantos medicamentos normalizadores. É também pela política de normalização e de opinião geral que pesa sobre a sociedade, que vai rebentando por todos os lados em desvios, em disfunções e malformações. A opinião de que para viver é preciso estar na norma, no bom caminho da carreira, da família, da educação, do pensamento e se não se vive assim é o caos. E isto acontece numa sociedade onde há cada vez mais crime.
Para este simpósio convidou pessoas de áreas muito diversas, da psiquiatria, da filosofia, das artes. O que é possível discutir?
Há dois planos que orientam a organização do colóquio. Um é o plano do testemunho. Artistas, autores, vêm falar da sua experiência, do ponto de vista da disfunção. Aquilo a que a Hélia Correia chama "os meus louquinhos". Todo o artista, e sobretudo o grande artista, tem algo a dizer, porque andou a ladear fronteiras próximas do desvio, do abismo, da loucura mesmo. Bruno Monsaingeon vai falar sobre Glenn Gould, e vai ser muito interessante ver como é que o pianista organizou a sua "loucura". Grande intérprete que ele era, era-o porque organizou o seu desvio. Isso é muito importante.
É possível organizar esse desvio?
Teremos o plano dos testemunhos, e o outro é: como é que isto é possível, como se faz? Aí há imensas questões. E uma que me parece nuclear é a que acaba de levantar: porque é que o caos ou o ladear o caos pode levar à loucura e porque é que às vezes não leva à loucura e leva à grande arte? O que se passou? O que pode ser? Que garantias - esta é uma palavra de psiquiatra - há para que não se entre na loucura quando se convoca o caos? Os artistas são os primeiros a convocar o caos. Quando se limpa o espaço psíquico, o espaço da relação psíquica com a sociedade e com a cultura, entra-se numa caotização de si. E aí não há um eixo a que se agarrar, porque então já não é o caos. É um risco, e todos os artistas correm esse risco, e é querer esse risco. Há uns que ficam. Estou a pensar, claro, em Hölderlin e em Nietzsche.
Em Portugal temos o caso de Fernando Pessoa.
Fernando Pessoa várias vezes sentiu que necessitava de tratamento psíquico. Aos 18 anos, aliás, foi tratado num hospital psiquiátrico, por indicação do Egas Moniz. Felizmente ele não o lobotomizou.
Os psiquiatras sabem que há uma barreira que, se ultrapassada, pode limitar a criatividade?
Infelizmente, não sabem todos. O Antonin Artaud levou dezenas, senão mais, de eletrochoques, ficou com um ódio total ao eletrochoque. Psiquiatras bem conhecidos não tinham consciência de que há uma barreira.
Esse é um dos temas de que vão falar no simpósio?
Françoise Davoine foi muito importante para a organização do colóquio, dei muita importância às ideias dela sobre a loucura. Ela é psiquiatra, psicanalista e quis promover uma coisa que é uma aberração mas que está a funcionar, segundo parece, na sua clínica, a psicanálise de psicoses. A psicanálise não vai com as psicoses, é para neuróticos. Ela reelaborou uma certa psicanálise do Lacan e outros para o tratamento de psicóticos. Escreveu livros muito interessantes.
Está com grande expectativa em relação ao que vai ser debatido?
Vamos ficar um bocado bêbedos, com três dias de impregnação dessa problemática.
Que público gostaria de ver lá?
Toda a gente, mas gostaria de ver artistas, psiquiatras, críticos de arte. É muito importante que compreendam que há qualquer coisa. Falou de Fernando Pessoa. Eu estudei bastante Fernando Pessoa e ultimamente tenho-o estudado nesta perspetiva, e é extraordinária a falta de inteligibilidade dos estudos que se têm produzido. Há dois volumes de textos de Pessoa sobre o Génio e a Loucura. Ele estava obcecado com isto, porque ele se sabia louco, e disse-o: "Sou um génio, mas sou um génio louco". É tão minucioso, preciso, pensado e vivido que se pode perguntar como é que ele não entrou na loucura.
Gostaria que estudantes das áreas das artes fossem assistir?
Muito. É bom que os jovens saibam que há uma área da vida, uma área da estética, da fenomenologia da arte que é extremamente importante e tem sido negligenciada. Os estudos sobre isso são raríssimos, não do ponto de vista da psiquiatria, mas da estética. Há um sobre a técnica de Van Gogh a partir desta problemática, coisas que se encontram aqui e ali. Estudou-se Pessoa através do retrato clínico enquanto neurasténico, e isso é sempre redutor. Essa é a problemática do último painel - crítica e clínica. Onde devemos situar-nos para falar sem reduzir a obra de arte a uma explicação psiquiátrica, em que ela acaba como objeto artístico. E o que pode a obra de arte trazer à psiquiatria. É muito difícil e interessante.
É pela necessidade de rutura com as normas que a grande arte está sempre à frente da realidade?
Certamente. Sempre à frente porque no presente, nas movimentações, nas impressões, nas vibrações atuais já se anuncia. O artista tem acesso a esse universo microscópico, ele é uma espécie de anunciador profético, está sempre um visionário do futuro. O grande artista, com certeza.