Silêncio, que se vai cantar o Fado Bicha
Lila Fadista e João Caçador é a dupla do projeto, que procura dar visibilidade às histórias da comunidade LGBTI
O que torna uma pessoa homem ou mulher é uma "inquietação" que Lila Fadista espera ajudar a responder cada vez que subir ao palco com o Fado Bicha, um projeto musical que quer dar mais visibilidade à comunidade LGBTI.
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A problemática do género é apenas uma das muitas que têm eco na voz de Lila Fadista e nos acordes de João Caçador, a dupla que forma o Fado Bicha, um projeto que, através do género musical português por excelência, procura dar visibilidade às histórias da comunidade Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo (LGBTI).
Nada no Fado Bicha é por acaso e o nome também não, já que a palavra 'bicha' "tem um caráter muito negativo" e uma carga bastante pejorativa entre os homens homossexuais, por servir para definir especificamente os "homens homossexuais femininos".
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"Isso para nós acaba por representar uma ideia de subversão. Uma subversão que vale pela maneira como sentimos o fado e porque sentimos que faz sentido pegar nas tradições e naquilo que faz parte da nossa identidade e misturar com outras faces da nossa identidade", explicou Lila Fadista à Lusa.
Subversão que começa logo no facto de os fados não serem acompanhados com viola ou a tradicional guitarra portuguesa, mas sim com guitarra elétrica, e que continua pelas letras fora, muitas tendo por base fados tradicionais que são alterados para se adaptarem à realidade LGBTI.
Um desses fados, e o primeiro a fazer parte da lista de músicas interpretadas pelo Fado Bicha, é o "Namorico do André", uma adaptação do fado "Namorico da Rita", que ficou conhecido pela voz de Amália Rodrigues, e que fala da relação entre dois homens.
Lila Fadista explicou que há vários processos nas canções, havendo algumas em que foi alterada a letra, com partes da letra original e depois um verso novo, outras que foram reescritas por completo utilizando músicas conhecidas, como "Nem às Paredes Confesso" ou a "Marcha de Alfama", e outras ainda em que as cantam "tal qual como elas são".
"Há ainda um quarto processo, que começámos há menos tempo, que é fazer uma espécie de arqueologia LGBT do fado porque já existiam pessoas LGBT ligadas ao fado desde há muitos anos, nomeadamente poetas como o Ary dos Santos que escreveu alguns dos poemas mais famosos para fado", adiantou.
João Caçador aproveita para referir que não é objetivo deste projeto ferir suscetibilidades entre os mais puristas, apontando que há espaço para todo o tipo de fado, ao mesmo tempo que deve haver e deve ser mantido o fado tradicional.
"É importante cumprir essa tradição, mas isso não impede que surjam novas experimentações e o Fado Bicha não vem romper ou corromper nada em particular. É um exercício artístico de ativismo e que não procura sequer ferir suscetibilidades nenhumas", referiu.
Lila acrescentou, por outro lado, que quem for ver um concerto "percebe facilmente" que este é um projeto de intervenção, não só por causa das letras, ou pelas explicações que vai dando antes de cada música, mas também porque o Fado Bicha serve para abordar temas que são importantes não só para a comunidade LGBT, mas a sociedade em geral.
João Caçador explicou que o que o motivou a integrar este projeto -- já que é músico profissional de fado - foi poder experimentar e tocar uma "coisa completamente diferente", estando "isento de regras estabelecidas, quer musicais, quer o que era esperado para o fado".
"A arte tem esse papel e o Fado Bicha deu-nos esse espaço de estarmos livres e podermos criar o que quiséssemos", sublinhou.
Já Lila Fadista queria cantar fado e conseguir exprimir-se sem ter que o fazer da forma que era esperada de um homem, conseguindo encontrar uma forma em que se sentisse representada naquilo que canta.
Os dois conheceram-se num bar em Alfama, onde Lila Fadista já atuava com este nome, experimentando cantar fado em modo transformista, e onde João vai para ver um espetáculo e acaba convencido por um amigo a fazer uns ensaios e dar o seu acompanhamento musical à voz de Lila.
De há um ano para cá, têm conseguido crescer e se no inicio atuavam em "espaços mais periféricos", o impacto causado já foi o suficiente para serem convidados a atuar no festival "Política" ou na cerimónia de encerramento do sexto fórum europeu no âmbito das comemorações do Dia Internacional de Luta contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, no dia 14. Na ocasião estiveram presentes a ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, e a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro.
Vão estar na primeira marcha do orgulho gay de Bragança, no próximo fim de semana, e esperam agora conseguir atuar fora dos grandes centros urbanos, onde faltam espaços de convívio para a comunidade LGBTI, procurando levar "esse pequeno momento de comunhão e de representatividade para as pessoas LGBTI desde Trás-os-Montes profundos até à Madeira".