Raduan Nassar, o Prémio Camões que defendeu Dilma
O vencedor do Prémio Camões é um escritor recluso há 20 anos. Só há semanas apareceu em Brasília a contestar o "golpe de estado" contra a presidente Dilma
Tem toda a obra publicada em Portugal o escritor que ontem foi anunciado como vencedor do Prémio Camões, o mais importante da língua portuguesa. Não que seja uma edição complexa, afinal Raduan Nassar só publicou três únicos livros na sua vida de 82 anos: Lavoura Arcaica, O Copo de Cólera e A Menina a Caminho. Que juntos não ultrapassam em muito as 200 páginas.
A sua biografia pública é pequena: "Nasceu em 1935, em Pindorama, e, lá passou a infância. Adolescente, foi com a família para São Paulo, onde cursou direito e filosofia na USP. Exerceu diversas atividades e estreou na literatura em 1975. Tem livros traduzidos na Espanha, França e Alemanha e é considerado um dos maiores estilistas da língua portuguesa."
Pequena a obra mas tão forte que o júri não teve grande dificuldade em encontrar o nome vencedor desta 28.ª edição do Prémio Camões. Até porque Raduan Nassar estava na maior parte das listas que os membros do júri levaram consigo para a reunião em Lisboa que escolhia o novo Camões. E, após as primeiras rondas negociais, logo o júri percebeu para onde se encaminhava o veredicto e o respetivo prémio, no valor de 100 mil euros.
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De fora ficou o hipotético escritor africano que, se fosse respeitada o critério da rotatividade, seria preferencial. Como essa regra não existe no regulamento a não ser por cortesia, apesar de na reunião do júri ter sido ponderado se a cumpriam ou não, a decisão foi rápida - três horas - a favor do autor brasileiro. A questão africana foi desvalorizada pela escritora e júri Inocência Mata, mesmo que tenha feito questão de referir a existência de "grandes escritores africanos que merecem este prémio."
A curta extensão da obra de Nassar não foi óbice para o júri ao considerar "que o escritor não cede a pressões do mercado sobre a produtividade ou presença pública mais constante. Cria a obra literária em total independência aos valores que lhe são antagónicos".
Nassar é um dos mais discretos escritores do Brasil, tendo há duas décadas deixado de escrever e decidido regressar à terra natal e dedicar-se às atividades agrícolas - é o que se diz, pois a comunicação social não consegue chegar à conversa com ele. Desde que decidiu esse exílio voluntário, desapareceu da vista dos leitores e foi considerado um eremita. No entanto, a sua obra não entrou no limbo, tanto que há dois meses um seu livro foi escolhido para a lista dos 13 semifinalistas do Prémio Man Booker Internacional e no Brasil é uma das mais prestigiadas editoras que continua a publicar o seu trio de obras.
Em Portugal, a editora Cotovia e a Relógio D"Água dividem a edição. Mesmo que o estabelecimento em Portugal da chancela Companhia das Letras possa passar a deter a publicação do autor. O editor Francisco Vale recorda a sua única conversa com Nassar: "Ele era muito reservado e esquivo. Quando acertámos a edição, obrigou-me a nunca fazer um volume único com as obras como tinha acontecido em França." Quanto ao registo, diz que sentiu "uma revelação ao ler O Copo de Cólera, uma espécie de regresso do filho pródigo, que rompia com a literatura neorrealista de um modo fatal, até irreverente".
Política dita fim do eremita
Quanto à famosa reclusão de Raduan Nassar, ela foi interrompida há algumas semanas para grande surpresa de todos, quando decidiu reaparecer em público e fazer uma proclamação contra o "golpe de estado" contra a Presidente Dilma Rousseff. Nassar contesta o processo de impeachment e o caminho da política brasileira nos últimos meses, tendo-se sentido na obrigação de tornar conhecida a sua opinião. Isso mesmo confirmou ao DN o presidente do júri, o poeta brasileiro Sérgio Alcides Amaral: "O Raduan Nassar é muito recluso e avesso aos holofotes. Não é por vaidade, antes uma forma de ser introspetiva. As circunstâncias políticas lamentáveis que o Brasil vive neste momento retiraram esse escritor da reclusão, e fez um pronunciamento contrário à queda da legalidade quando se punha em marcha o golpe de estado que aconteceu efetivamente com o impeachment. Essa atitude tão extraordinária mostra um senso de responsabilidade que contraria o seu modo de ser. Ao ser compelido a pronunciar-se, o resultado foi de grande impacto social."
Para o presidente do júri, a saída da sombra de Nassar teve um resultado muito forte: "O efeito dessa sua declaração foi muito relevante, o que confirma a importância da sua obra, que não é engajada politicamente. O facto de a sua voz ter tido essa repercussão mostra que a extensão da obra não corresponde ao impacto que ela tem."
Passada a atividade política a favor da Presidente Dilma, Nassar regressou ao estatuto de eremita que, praticamente, só ontem à tarde foi alterado quando aceitou falar com o secretário de Estado da Cultura português, Miguel Honrado, para ser informado da decisão do júri. Segundo o governante, Nassar reagiu "com muita surpresa, como é natural, e disse sentir-se honrado com esta distinção". Revelou ainda que o escritor "não esperava o anúncio, mas acolheu-o com satisfação e orgulho".
Quanto à data de entrega do Prémio Camões, nada ficou decidido, remetendo Honrado para acerto posterior. Na ata do júri composto por Paula Morão e Pedro Mexia (Portugal), Flora Sussekind e Sérgio Alcides do Amaral (Brasil), Lourenço do Rosário (Moçambique) e Inocência Mata (S. Tomé e Príncipe), ficou registado: "Nassar privilegia a densidade da sua obra em detrimento da extensão".