Quando o piano canta o fado e enfrenta o medo

Sílvia Pérez Cruz e Moreno Veloso juntam-se a Júlio Resende em Lisboa. Fado & Further vem do disco gravado na noite em que Amália não cantou e o pianista avançou sozinho

Se Júlio Resende teve medo? "Claro. Não terias? Se tivesses uma coisa preparada para fazer em palco e essa coisa não acontecesse, se fosse o último tema, estivesses na Gulbenkian e a sala estivesse cheia, não terias?"

Se o escutamos é porque o interrompemos naquele tempo em que ele se queria fechado com o seu piano, a preparar o concerto desta noite no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, para que convidou a catalã Sílvia Pérez Cruz e o brasileiro Moreno Veloso. Os três juntar-se-iam pela primeira vez ontem, em palco, na terra algarvia em que o pianista cresceu, Olhão. Haveríamos de chegar à voz e graça de Sílvia e ao jeito de Moreno, que é bem mais que baiano, filho de Caetano, sobrinho de Maria Bethânia ou neto de Dona Canô.

Quando Amália não cantou

Mas então Júlio falava naquela noite em que começava a fazer ressoar Medo pelo grande auditório da Gulbenkian, canção do álbum Amália por Júlio Resende - em que pela primeira vez após a morte da fadista uma gravação da sua voz foi usada -, e Amália não quis cantar. Isto é, a gravação não entrou, e ele teve de tocar sozinho. "Foi a primeira vez que toquei a melodia com os meus dedos." Foi o piano que cantou O medo mora comigo, mas só o medo, mas só o medo.

Veio depois agradecer com a sua boina de sempre a cobrir-lhe a cabeça. A plateia aplaudia como quem se levantasse à falta de semelhante chapéu para tirar em jeito de deferência. Foi em setembro de 2014. Sílvia Pérez Cruz cantou nesse concerto gravado e editado em novembro último sob o nome Fado & Further, que livremente traduzido, diz ele, seria algo como "Fado em Frente". Como um passo.

Júlio Resende toca o fado - haveria de corrigir "pesado" por "intenso" -, mas está sempre de riso pronto, sincopado como é o seu. Explica que o concerto na Gulbenkian significou "um conhecimento natural do tempo que decorreu desde o Amália [2013], todos os dias há possibilidades para estarmos vivos e ao vivo". É por isso que há Uma outra Mariquinhas, que Medo se tornou Enfrentar o Medo, e será talvez por isso que o tema Fado Loucura/Sou do Fado se torna quase gingão, de ritmo jazzístico (onde o pianista por muitos anos se moveu), com um movimento próprio de quem está em casa e se regozija com isso mesmo. Era, aliás, o que dizia quando lançou Amália: que partia de casa e a ela regressava.

Editou um álbum gravado ao vivo, em bruto em vez do apuro do estúdio. "Tudo o que eu queria ali era a imperfeição, perceber a grande força vital que ela contém." Como aconteceu Sílvia a cantar Amália, em Lágrima. E outra vez Sílvia, que Júlio diz tratar "a música de um modo muito familiar, quase com essa facilidade que vem da dedicação", a cantar Pare Meu. "Meu pai", que faz parte do primeiro álbum de Pérez Cruz, 11 de novembre. Foi o dia em que nasceu o seu pai, o também músico Càstor Pérez Diz, que morreu em 2010.

Fado, flamenco e samba da roda

Desta vez, no CCB, ainda há Moreno Veloso na equação. Ele que nasceu no dia de Santa Cecília, a padroeira dos músicos, 22 de novembro. No ensaio com Júlio Resende, o músico formado em Física diz que ainda não sabe se tocará prato (mesmo, de porcelana) e faca, ao jeito do samba da roda lá de Santo Amaro, Bahia.

Tocaram juntos pela primeira vez há alguns anos, em casa de amigos. Moreno, visita regular ao país, tocou violoncelo naquela noite. "Você conhece essa família? Havia um monte de instrumentos lá." Fala com a mansidão com que canta ou toca "violão". Júlio diz que ele é "um artista singular porque apenas procura acentuar aquilo que já é a sua singularidade".

Voltamos a Amália e ao medo desta. "Não tem que se saber o que é. Entendo-o musicalmente, já o toquei. Está dito. Os aspetos da vida que eu entendo melhor, digo-os musicalmente." Se não o percebermos, não faz mal. Afinal, também "estar apaixonado é não nos percebermos, de uma certa maneira" e a "lucidez pode ser sabermos que não sabemos nada". Está dito.

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