Pessoa é "alimento para os meus futuros projetos"
Apesar de ter escrito tanta página, Garth Risk Hallberg nunca tem a data de nascimento em lugar algum. Claro que este é um pormenor que pouco interessa se não fosse olhar-se para ele e achar-se que se está perante alguém muito jovem e que nem terá vivido aquele ano de 1976 a 1977, de que tantas coisas relata. Hallberg passou por Lisboa e ainda ficou mais fascinado pelo país do que já estava. A culpa é, como quase sempre, de Fernando Pessoa, o poeta que escreveu o Livro do Desassossego que tanto o tem inspirado, ao ponto de confessar que é "alimento para os meus futuros projetos".
Hallberg gosta de referir o seu amor - talvez seja melhor falar de deslumbramento - por Nova Iorque. O tema do livro e a cidade que vem à baila muitas vezes. É fugitivo quando se questiona o seu sucesso e prefere dar exemplos de escritores que o poderiam ter influenciado além daqueles que foram surgindo na muito bem orquestrada campanha de lançamento feita nas semanas antes de o romance chegar às livrarias. Que foi logo posto na categoria especial de O Grande Romance Americano e referido exaustivamente por todos os críticos norte-americanos famosos, apesar de a adesão dos leitores ter sido inferior ao que se esperava no mercado norte-americano.
A entrevista acontece na superterça-feira das eleições nos EUA e logo diz: "O meu estado, Nova Iorque, não vota nas primárias neste dia, por isso não estou preocupado por estar aqui." A eleição começa por ser o primeiro tema de conversa, até porque é no ano em que se situa Cidade em Chamas que Donald Trump começa a vida empresarial que o leva a ser candidato.
Não sei se é republicano ou democrata, mas está preocupado com a ascensão de Donald Trump?
E não está toda a gente? O mais curioso é que nesta digressão que ando a fazer pela Europa estão sempre a perguntar-me sobre isso e também sobre o pós-11 de Setembro, que são períodos de crise muito perigosos, nos quais muito do que se pensava ser impossível se torna possível. Neste momento, na América, vivem-se situações que dividem o país, mas que são semelhantes às que estão a acontecer na Europa: os temas dos imigrantes, da segurança e populismo económico.
Estranha que a Europa esteja tão atenta às eleições nos EUA?
Quero acreditar que fora da política partidária onde o sistema das primárias acontece, numa eleição geral, não será possível eleger na América um candidato com tão pronunciadas tendências para a demagogia e o culto de personalidade. Isso, no entanto, depende muito da natureza humana e da dependência em relação ao espetáculo em que a eleição se tornou. Pode-se comparar com a situação em França, onde votaram como protesto na Frente Nacional na primeira volta mas na hora da verdade foram prudentes.
Como romancista olha para Trump e vê um bom personagem?
Isso é de certeza, mas descrever o que lhe vai no interior deverá ser muito difícil. No caso do meu livro, as personagens podem ser vistas tanto em momentos públicos como privados, o que dá para perceber muito do que são. Neste caso, não sei se seria escritor suficiente para dizer quem ele é de verdade.
Cidade em Chamas passa-se na mesma época em que Trump começa a carreira imobiliária...
É verdade, num período em que toda a gente está com medo da situação económica e financeira mundial, aquela que foi o melhor cenário para se estabelecer uma política neoliberal de modo consensual. No meio dessa crise gigantesca algumas pessoas viram uma ótima oportunidade para comprar barato e vender caro. Ironicamente, a austeridade começa como política nos anos 70, nessa Nova Iorque que estava em bancarrota.
E pouco depois surgirá Ronald Reagan. Outro personagem tão polémico como Trump?
O que considero polémico é a Europa estar a falar tanto de Trump quando está a viver um momento histórico muito interessante. É que, ao observar o vosso projeto europeu, surpreendo-me como é a imagem que os Estados Unidos projetam para o mundo.
No seu livro há um apagão que aconteceu em Nova Iorque em 1977. Era o paralelismo que precisava para contar o que queria?
Sim, curiosamente mostra como nos podemos afastar da perceção do que está realmente a acontecer. O que a comunicação social mostrou dessa noite do apagão não é o que eu ponho no livro, a mobilização orgânica da população: os que saltavam para o meio do cruzamento e organizavam o trânsito, os restaurantes que alimentavam as pessoas que tinham fome, por exemplo. No dia seguinte, as reportagens não mostravam essa parte. Faz-me pensar na cobertura destas eleições nos EUA, que apenas mostram o lado negro da natureza humana.
Há quem o considere um escritor romântico pela forma como retrata os anos 70. Concorda?
Não. Posso ser um romântico se essa forma de ser tiver mais que ver com a natureza humana quando enfrenta certas situações históricas. Aquelas que acho que devo relatar sob um modo muito impressivo, porque o mundo que se viveu nesse tempo era marcante não só a nível económico mas cultural. Dou um exemplo, a indústria musical, que nasceu nessa área de Nova Iorque e permitiu enormes possibilidades de afirmação. Penetrar nesses momentos era interpretar o futuro sob muitas formas, tantas que até hoje não as esgotámos. Desse ponto de vista o livro fala muito forte para compreendermos onde estamos e como se fizeram as escolhas: foi sempre tudo decidido sem nos perguntarem - compreender isso atraía-me. Quanto à classificação romântico, não a vejo como um insulto, porque se pareço um pouco sonhador o que dizer então de Walt Whitman ou de Fernando Pessoa? Acreditar profundamente na realidade e no espírito não pode fazer de nós um nostálgico de um tempo.
O seu livro pode ser condensado nos primeiros versos da música de Billy Joel New York State of Mind?
Tem algo que ver com Billy mas não é essa. Mesmo não sendo um grande fã dele, quando tinha 24 anos ia num autocarro da Greyhound e ouvi uma outra canção, Miami 2017. Que tinha uma letra de ficção científica e falava de uma Nova Iorque onde era impossível viver devido à decadência e toda a gente estava a mudar-se para Miami.
Foi anunciado como a descoberta do ano e o livro o grande romance Americano. Não é perigoso para um escritor ser consagrado antes mesmo de publicar o romance?
Nada tenho que ver com isso, nem sequer pensava que o livro fosse publicável durante os três anos que levei a escrever a primeira versão. Nem disse a ninguém o que estava a fazer. Entre 2003 e 2007 só tinha medo daquilo que um escritor deve recear: ser um projeto impossível. Quando acabei de escrever era a altura em que os Estado Unidos entraram em crise; as livrarias fechavam, os livros ficaram caros e toda a gente optava pela internet. E ali estava eu com um romance à Dickens, de mil páginas, e era um zé-ninguém. Então, as musas inspiraram-me - ou seja lá o que for - e a dado momento sentia-me como se fosse colega dos grandes escritores. Podia não publicar mas sentia que tinha escrito um livro como eles. Como não tinha pedido autorização a ninguém, também não precisava de me preocupar. Então, enfiei-me no sótão e dediquei mais três anos ao livro. Ou seja, ninguém ficou mais surpreendido com tudo o que veio a acontecer do que eu.
Teve uma crítica muito elogiosa do Michiko Kakutani no New York Times, entre outras. Não se falou do livro mais do que ele valia?
Também sou crítico literário e considero que os livros valem mais do que os críticos. Talvez seja difícil chegar ao verdadeiro livro após tantas camadas de comentários, mas há demasiados livros a serem publicados e aos quais não se dá atenção.
Tanta publicidade ao livro não criou demasiadas expectativas?
Também tenho esse problema como leitor mas enquanto crítico sempre achei que era um espião porque não fazia parte do livro. Quando um livro chega a mim, tanto faz se tem muitos ou poucos elogios, o único critério é se gosto das primeiras cinco/seis páginas. Há muitas teorias em volta dos livros, mas eles vivem por muitos anos nas prateleiras. Um bom livro vive dez anos; um muito bom, 25; os grandes por 50 anos, e os magníficos toda a vida. Portanto, a publicidade é indiferente, e posso dar como exemplo o Livro do Desassossego. Se o encontro na estante é porque é uma obra--prima e, entre outras coisas, interessou-me bastante este livro do Pessoa porque é alimento para os meus futuros projetos. Achei que era um livro impossível, mas quando li a tradução do Richard Zenith percebi como era capaz de ouvir a música do tempo em que foi escrito e num texto tão poderoso.
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