"Paris, Texas", o sonho americano é um lugar distante
"Esta colisão de Paris e Texas cristalizou, de um só golpe, muitos elementos do argumento." Wim Wenders, cineasta europeu atraído pela cultura americana, ele próprio um misto dessas referências, convocou dois imaginários opostos para o mais amado dos seus filmes. Paris, Texas (1984), esse mesmo, estará em reposição a partir da próxima quinta-feira (no Espaço Nimas, em Lisboa, e no Teatro do Campo Alegre, no Porto), a evidenciar a beleza da dupla linhagem.
Desde logo, o vívido contraste do título espelha-se no protagonista, Travis, um homem misterioso, de olhos nostálgicos e pele rude, de quem ficamos a conhecer - depois de um longo silêncio - a demanda por uma cidade que, justamente, se chama Paris, mas em vez de se situar em França fica no Texas.
Perguntamo-nos se ela existirá apenas na fotografia que traz consigo, de um pedaço de terra onde se vê uma tabuleta a indicar "à venda", ou se está mesmo no mapa (para que conste, é uma pequena cidade localizada no condado de Lamar, atualmente com pouco mais de 25 mil habitantes). Conta o protagonista, a certa altura, que foi lá que o pai e a mãe se conheceram, e era também esse o motivo de uma anedota muitas vezes contada: "Conheci a minha mulher em Paris...Texas."
[youtube:9e590FeeGCM]
O início do filme convoca-nos para um western. Travis Henderson (emblemático papel de Harry Dean Stanton) é um corpo que se avista na paisagem desértica, de boné vermelho, garrafão branco na mão, fato e camisa andrajosos. Uma águia vigia-o, tal como os densos acordes da guitarra de Ry Cooder.
Não sabemos nada sobre este homem, o que o levou àquela situação e há quanto tempo anda assim, ao deus-dará em terra seca. Os primeiros esclarecimentos surgem depois de ele cair inanimado num bar e ser ajudado por um médico, que descobre o contacto do irmão: Travis estava desaparecido há quatro anos, e tem um filho com 7.
Depois de um reencontro acidentado, começa o road movie, essa estética que configura o vínculo particular de Wenders com a mitologia americana, notória na trilogia Alice nas Cidades (1974), Movimento em Falso (1975) e Ao Correr do Tempo (1976). O regresso de Travis a casa é, simultaneamente, o confronto com o segredo do seu desaparecimento, e a tentativa de recuperar a estima do filho.
A mulher, Jane (uma inesquecível Nastassja Kinski), também desaparecida, será a luz da terceira parte do filme, que inflama um belíssimo diálogo de confissão e um desfecho virtuoso. É por essa altura que temos a resposta à pergunta: o que fazia aquele homem no deserto?
Uma unânime Palma de Ouro
Nesses meados da década de 1980, em que Wim Wenders estava ainda fragilizado pela insípida receção crítica do filme Hammett, Detetive Privado (1982) - uma atribulada colaboração com os estúdios Zoetrope, de Francis Ford Coppola -, Paris, Texas veio simbolizar o eloquente regresso do realizador, cujo prestígio sempre o colocara ao lado de grandes nomes do dito Cinema Novo Alemão, como Werner Herzog, Hans-Jürgen Syberberg ou Rainer Werner Fassbinder. Acima de tudo, foi a sua projeção internacional.
Estreado no Festival de Cannes de 1984, o filme venceu a Palma de Ouro nesse ano, com um júri presidido por Dirk Bogarde, e composto, entre outros, por Isabelle Huppert e Ennio Morricone. Este último não terá ficado indiferente à banda sonora original de Ry Cooder...
Vale a pena notar que Paris, Texas é um filme espantoso também pela confluência de contributos, dos quais a fotografia de Robby Müller (que colaborara antes na trilogia de road movies), mas sobretudo o argumento do dramaturgo e ator Sam Shepard, são pedra angular. Ninguém esquece o compassado monólogo de Travis diante de Jane, que não o pode ver, numa cabine envidraçada, nem o vestido rosa-choque dela.
As palavras, os silêncios e as cores são elementos dramáticos que se harmonizam em função de uma narrativa familiar, exposta com enorme subtileza. A tragédia das personagens habita-nos pela sua comovente verbalização. Duas forças se sentem, em permanência, numa paisagem que é tanto exterior como interior: um romantismo europeu numa aridez texana.