Os portugueses à procura dos segredos (e salvação) do vidro de Murano

Um químico da unidade de investigação Vicarte está à procura de financiamento para um projeto sobre a substituição do arsénio no vidro de Murano, com a ajuda de um designer francês que se mudou no ano passado para Lisboa
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António Pires de Matos mostra uma imagem de dois cálices decorados com filigrana: lado a lado, um parece quase perfeito enquanto noutro o branco derrama-se e desvanece. É a diferença entre usar ou não usar arsénio no vidro, realça no fim da apresentação, perante uma audiência especializada no tema, em Veneza, a cidade do vidro de Murano, com séculos de tradição. É um problema que conhecem bem: desde que o arsénio foi proibido, para proteger os trabalhadores e o ambiente, que os vidreiros de Murano procuram um substituto à altura - sem sucesso.

É aqui que entram o químico Pires de Matos e os outros investigadores da Vicarte, da Universidade Nova de Lisboa e da Faculdade de Belas-Artes, e também o designer Emmanuel Babled, que vive há ano e meio em Portugal. Os dois estão determinados a descobrir os segredos do vidro de Murano para encontrar uma forma de substituir o arsénio sem perder qualidade. "Sem perder opções", diz Babled.

A Vicarte é uma unidade de investigação especializada em vidro que junta ciência e arte - uma paixão antiga de Pires de Matos, que nos últimos meses encontrou um aliado em Babled, que durante mais de duas décadas trabalhou com vidro em Itália. O problema põe-se com o arsénio, utilizado para fazer o vidro branco, opalino, e a tradicional filigrana de Murano, mas em breve, dentro de dois anos, também com o cádmio, explica Babled. "É um enorme problema porque o cádmio é utilizado para fazer os amarelos e o vidro de Murano é conhecido pela sua cor." Combinado com o selénio é responsável também pelo vermelho e por toda a gama de laranjas entre as duas cores, acrescenta Pires de Matos.

Nenhum deles questiona a proibição destes químicos, determinada pela União Europeia, pela saúde dos vidreiros mas também pela própria ilha - Murano é na verdade um arquipélago em Veneza especializado na produção vidreira desde o século XIII, quando o Duque ordenou a concentração de todos os artesãos longe da cidade, para evitar que incêndios originados nas fornalhas consumissem toda a Veneza, mas também para evitar a fuga dos segredos do vidro que tanto contribuiu para a riqueza e a fama da República. "A própria ilha está muito contaminada, o ar e o subsolo", salienta o químico. No entanto, ambos veem com preocupação o futuro de Murano, que apesar da tradição não escapa à crise que tem arrasado os grandes centros vidreiros da Europa, como a Marinha Grande, sobretudo pelo que se pode perder em conhecimento e tradição armazenados ao longe de séculos, diz Babled.

O clima de secretismo que marcou o início da produção em Murano e a rivalidade inerente à existência de centenas de vidreiros no mesmo espaço ainda hoje se mantém. "Cada vidreiro faz o seu vidro, com uma composição diferente", diz Pires de Matos, a expressão a trair alguma impaciência para o método, ou falta dele. Para o químico, é preciso mais ciência: só percebendo a composição química do vidro, a própria estrutura, depois de todo o processo, depois do calor dos fornos, é possível começar a fazer testes para encontrar um substituto do arsénio que faça o mesmo, ou seja, que se comporte da mesma forma. O que apresentou nesta semana em Veneza é o resultado de um trabalho preliminar feito em parte com acelerador do antigo Instituto Nuclear e amostras de vidro de vidreiros de Veneza, mas tem consciência de que este será um projeto para dois ou três anos.

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Babled, um designer que gosta de "incluir o trabalho e o conhecimento dos artesãos" nos seus produtos, quer seja o vidro de Murano, o mármore de Carrara ou mais recentemente a cortiça portuguesa, tomou conhecimento do projeto e achou que podia fazer a sua parte. Reconhece que está habituado a pensar no mercado e quer pôr esse conhecimento ao serviço de uma causa maior, "manter a herança cultural" da região, ajudando a encontrar financiamento, em Veneza, para avançar com este projeto.

O designer francês mostra, a título de exemplo, uma das peças exclusivas que fez para a Venini, uma das mais importantes vidreiras de Murano: a jarra Pyros é um objeto artesanal, de edição e circulação limitadas e com preço a condizer; é feita nos fornos da Venini, por uma equipa de sete pessoas que vão salpicando de cor o corpo transparente do objeto. "Este laranja não será possível fazer da mesma forma daqui a dois anos", aponta.

Nos Estados Unidos, onde o cádmio já foi proibido, a solução passou por instalar "uns filtros muito potentes e caríssimos nos fornos", explica Pires de Matos, mas estes seriam incomportáveis para as pequenas vidreiras de Murano, dedicadas à produção artesanal. Aliás, mesmo no meio da Venice Glass Week, a decorrer nesta semana, uma nova iniciativa para promover o vidro da cidade, ninguém esconde que Murano enfrenta uma das piores crises da sua história, que o número de trabalhadores está reduzido a seis centenas, quando já foram muitos milhares. Resta portanto descobrir os segredos do vidro de Murano para dar uma ajuda, conclui Pires de Matos.

A jornalista viajou a convite da Venice Glass Week

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