O que dizem, e o que escondem, "As Tentações de Santo Antão", de Bosch
"Há pessoas que nos mandam e-mails a perguntar se o quadro está em exposição, porque só querem marcar férias e só vêm se conseguirem ver As Tentações de Santo Antão". Quem o diz é Joaquim Oliveira Caetano, conservador de pintura do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) e o quadro em causa é a tela da autoria do flamengo Hieronymus Bosch. É a obra que mais gente procura quando percorre as galerias do antigo palácio do Alvor, tão importante que inspira Os Dias da Música, até domingo no Centro Cultural de Belém, em Lisboa (ver texto com seleção).
"Bosch mistura muito convincentemente o caráter religioso do pecado com o seu caráter social ou ético, aquilo que é incorreto e também é colocado do lado do diabólico", afirma Joaquim Caetano sobre a obra.
No painel da esquerda de As Tentações de Santo Antão, o santo é amparado por três religiosos. Os dois habituais e um terceiro, de vermelho, que Joaquim Oliveira Caetano considera poder ser o próprio Bosch. "É uma personagem vestida à século XV, que se assemelha à figura dos três retratos conhecidos do Bosch. É alguém que ele quis representar num bom papel, o de quem ajuda o santo, afirma.
Sobre aqueles que se escondem debaixo da ponte, Joaquim Caetano diz que essa cena "já motivou variadíssimos artigos". "Parecem ler uma carta e a figura do diabo patinador tem uma espécie de brasão no manto vermelho já foi identificada como uma insígnia dos correios". "A última versão, que recebeu algum acolhimento, parece ser a de que é uma espécie de intimação". A cena é vista a dois tempos, porque no final, "toda a gente tem de prestar contas."
No painel central, Santo Antão, rodeado de demónios, aponta para o templo, onde Cristo por sua vez aponta para si próprio na cruz e fala do barco em forma de pato em que alguém, com óculos, lê uma pauta. "Essa figura aparece muito como uma espécie de gozo com o douto tonto, que comete o pecado do orgulho", diz o conservador.
À direita, o santo é tentado pela comida e bebida e também aparece uma jovem desnuda. Impossível analisar personagem a personagem. "Não é um alfabeto, é um sentido global, em que os significados se associam", afirma.
"Como em grande parte das obras do Bosch, o que é verdadeiramente fascinante, para além do lado plástico, é não se ter limitado a mostrar as tentações do santo, mas a ser capaz de inclui-las num programa mais vasto da perdição e da salvação humana, uni-la à história de Cristo para projetar com a pintura um aviso ou um caminho moral, ético, religioso da salvação, ao espectador, ao crente", refere Joaquim Oliveira Caetano ao DN.
Ao contrário do que acontece com outros trípticos, sublinha Joaquim Caetano, neste tudo é importante. Incluindo as grisalhas, ocultas quando a peça está aberta. Nestas, Bosch pinta a paixão de Cristo, da prisão ao calvário, em cenas reconhecíveis pelos crentes e em ligação com o que depois retrata nos painéis interiores - As Tentações de Santo Antão, o santo que se afasta para o deserto para viver em contemplação, apesar de tentado pelos demónios, como é contado na biografia do santo do século IV, escrita por Santo Atanásio.
Um conservador? Joaquim Caetano não usa este termo, fala antes de uma pintura de moralidades e responde com o trajeto de vida do pintor Jeroen van Aeken, alias Hieronymus Bosch, que se calcula ter nascido em 1450 e morreu a 9 de agosto de 1516. "É um cidadão bem instalado na vida, um dos cem mais ricos habitantes da sua cidade. Vive numa casa enorme na praça principal, no sítio mais caro de Hertogenbosch, que é uma cidade que no tempo dele é frequentemente visitada quer pela corte imperial quer pelos condes de Nassau quer pelos condes da Borgonha".
Feito o enquadramento, Caetano continua. "Esta movimentação de gente levou muitos nobres, mercadores, burocratas da entourage imperial ou ducal a Hertogenbosch e a ser clientela do Bosch. Ele não sai nem precisa de buscar clientela em outro lado. Vem ter consigo e fica fascinada com esta maneira estranha que o Bosch tem, sempre entendida como uma pintura de moralidades". E completa: "Não deixavam de ver o mal como uma consequência do diabólico, mas já o viam com uma espécie de incapacidade humana, nomeadamente quando se deixava arrastar para as feiras, para a preguiça..."