O Orfeo de Monteverdi, a ópera que fundou a ópera, hoje no CCB

Festival Monteverdi prossegue hoje com a apresentação da mais famosa ópera do autor italiano, estreada há 410 anos, numa produção italiana liderada pelo agrupamento vocal La Venexiana. Antes, a partir das 11 da manhã, começa a integral dos madrigais do compositor: os oito livros serão cantados até amanhã à noite por quatro diferentes coros, três deles portugueses

Ela é geralmente considerada como a obra em que o género musical "ópera" foi inventado, ou teve nascimento. Claudio Monteverdi, cuja efeméride do nascimento (450 anos) motivou este pequeno festival no Centro Cultural de Belém, chamou-lhe favola in musica, isto é, uma história fantasiosa (afinal, estamos a lidar com o mito de Orfeu) envolvida em música. Ela estreou a 24 de fevereiro de 1607, no Palácio Ducal de Mântua, numa performance privada para o duque Vincenzo Gonzaga, empregador de Monteverdi, acontecendo a estreia pública dias depois.

Esta noite (21.00) vamos poder revê-la no Grande Auditório do CCB, graças a uma produção italiana liderada pelo famoso agrupamento La Venexiana, cujo percurso em concertos e gravações ao longo dos últimos 20 anos os cimentou como talvez os mais autorizados intérpretes da obra profana de Monteverdi.

A direção musical será de Davide Pozzi, à frente de um elenco onde figuram o tenor Riccardo Pisani (Orfeo), o soprano Emanuela Galli (Eurídice e personagem alegórica Música), o baixo Guglielmo Bonsanti (Plutão), o mezzo Sophia Patsi (Mensageira), o baixo Jaromir Nosek (Caronte) e o contratenor Raffaele Pe (Pastor e personagem alegórica Esperança). A direção artística é de Gabriele Palomba.

Nem Orfeu reverte a morte

O libreto desta ópera é de Alessandro Striggio, um intelectual ligado aos círculos culturais mais progressistas da época (nomeadamente a Accademia degli Invaghiti), filho do compositor do mesmo nome. Para estabelecer o seu texto, baseou-se ele num texto de Angelo Poliziano do século XVI e em dois autores maiores da Antiguidade: Ovídio (Metamorfoses) e Virgílio (Geórgicas). A história é sobejamente conhecida e narra a tentativa de Orfeu, príncipe da Trácia e poeta e músico de "artes" mágicas, de resgatar a sua amada Eurídice do Hades (o reino dos mortos), gorada finalmente porque ele não resiste a olhar o rosto dela antes de deixar os domínios de Plutão. Esta história de final trágico é-nos contada ao longo de um Prólogo de caráter alegórico e de cinco atos narrativos, cuja ação oscila entre os campos da Trácia e as profundezas do Hades, sendo que cada um destes espaços nos é "servido" com um som orquestral bem diferenciado.

A novidade do Orfeo

Este pensamento tímbrico de que Monteverdi dá mostras é uma das mais-valias da obra, pois reforça a identidade sonora e agudiza o contraste dramático, marcas que são ainda complementadas pela associação de instrumentos particulares a determinada personagem. Tudo sobre um princípio performativo que deixa aos intérpretes espaço para a improvisação.

Mas a marca principal do Orfeo e que o diferencia de obras afins que o precederam é que Monteverdi soube aqui, acima de tudo, olhar por cima de todas as disputas estéticas que procuravam definir como deveria ser o novo estilo de contar uma história por música. Digamos que Monteverdi foi antes de tudo o mais aquilo que ele era essencialmente: um músico - e um músico de génio, sem dúvida.

Em vez disso, o compositor percebeu que deveria reunir a pluralidade de estilos suficiente para garantir que a sua obra e a história que se propunha recriar teriam variedade e coerência dramática suficientes para que o interesse e o encanto (já que falamos de Orfeu) musical da mesma se mantivesse inalterado de início ao fim. Para tal, Monteverdi recorreu, quer ao estilo madrigalesco herdado do século XVI e do qual já era um reconhecido mestre; quer aos princípios vanguardistas advogados pela escola florentina, sobretudo no que respeita ao uso e função do recitativo e ao canto monódico como princípio basilar do modo de verter um texto em música; quer finalmente ao estilo polifónico "antigo" (várias vozes em contraponto). Com isto demonstrando que a combinação judiciosa e com "mão de mestre" de vários estilos à sua disposição alcança maiores e melhores resultados dramáticos do que a adoção, sempre redutora, de um só estilo, movido por preconceito estético.

Apesar disso, é recente o reconhecimento do Orfeo. A obra esteve afastada dos palcos durante quase 300 anos: data de 1911 a primeira apresentação moderna encenada, em Paris. Mas só após a II Guerra Mundial, com a emergência do movimento que procurou restituir a identidade sonora das obras anteriores ao Classicismo, é que o Orfeo e restante obra dramática de Monteverdi (nomeadamente, O regresso de Ulisses à Pátria e A coroação de Pompeia) foram colocados no "panteão" que lhes é devido. O maior sinal disso é que ainda hoje regressam regularmente ao nosso convívio.

No CCB, além do Orfeo

Antes do Orfeo, como dissemos, ouvem-se os madrigais de Monteverdi, numa maratona que terá o seu epílogo apenas amanhã à noite. Os oito livros que o autor deixou serão interpretados pelos coros portugueses Officium, Ricercare e Grupo Vocal Olisipo (dois livros ca- da) e pelos Venexiana. A estes cabe encerrar o ciclo (amanhã, 21.00), cantando os livros 7 e 8. A "base" será sempre a Sala Luís de Freitas Branco e as "sessões" acontecem às 11.00, 14.30 e 17.00 de hoje e amanhã, mais às 21.00 de amanhã.

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