O milenar romance de Istambul com os gatos

Antes da estreia de <em>Gatos</em>, na quinta-feira, o DN falou com a realizadora turca Ceyda Torun sobre este documentário
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Foi Júlio Verne quem disse que os gatos eram "espíritos vindos para a Terra", desafiando-nos a imaginação perante a ideia de que "um gato andaria nas nuvens sem cair". Essa leveza espiritual de que fala Verne é consonante com o que se vê no documentário Gatos, de Ceyda Torun, a estrear-se nesta semana entre nós: seres que correm pelas ruas, telhados, toldos e árvores como se mal tocassem a superfície das coisas. Eles deitam-se no chão para ser escovados, rondam as esplanadas para pedir migalhas e amor, roubam peixe das bancas, miam como quem conversa, e até trazem a sorte aos habitantes de Istambul.

Depois de uma pesquisa intensa, que começou com a recolha de 35 histórias, a realizadora turca acabou por filmar apenas as de sete desses felinos vadios, seguindo-os por ruelas simpáticas, barcos, cafés, becos, mercados ou casas de portas abertas, na condição absoluta de liberdade. Não sendo animais de estimação de ninguém, Sari, Bengü, Psikopat, Deniz, Aslan Parçasi, Duman e Gamsiz foram devidamente batizados. Têm personalidades distintas e são parte do semblante da cidade.

Ceyda, que cresceu em Istambul até aos 11 anos, e agora vive em Los Angeles, valoriza muito esse estado puro da vivência que reporta à sua infância: "Os gatos de rua eram os meus amigos mais próximos. Por ter passado tanto tempo com eles, tornou-se muito óbvio para mim que são donos de si próprios, e não nossos animais de estimação. O modo como cruzam a paisagem da cidade e as relações que forjaram com os habitantes deixaram bem claro que tinham a sua própria perspetiva. Além disso, acredito que os gatos têm um significado espiritual na dinâmica da cidade, porque fazem parte dela desde sempre. Se lhes atribuímos uma espécie de imortalidade, isso também tem que ver com o facto de eles serem testemunhas de tudo o que ali aconteceu."

As mais recentes descobertas científicas apontam as origens da relação gatos-humanos ao momento em que se começou a cultivar na Mesopotâmia, há aproximadamente dez mil anos. E a verdade é que os gatos, tendo migrado com as pessoas, vivem em Istambul há tanto tempo como elas. Ceyda diz-nos que não há geração de turcos ou istambulenses que conheça a vida sem esses bichanos adoráveis. Além disso, "temos os ensinamentos espirituais do islão. Os gatos são reverenciados, e muitas vezes personagens principais de contos éticos". O mais famoso é sobre o gato do Profeta, que adormeceu na manga da sua túnica e este, tendo de sair para a oração, cortou o tecido da túnica à volta do gato para não o incomodar. "O "ser verdadeiro muçulmano" foi muitas vezes evocado pelas pessoas que entrevistei como a razão de zelarem pelos animais", acrescenta.

A certa altura, neste documentário, diz-se que os gatos estão cientes da existência de Deus - ao contrário dos cães, que julgam que os deuses somos nós. Este entendimento reforça uma cumplicidade com a sua própria existência, que se reflete nos gestos do dia-a-dia de algumas pessoas. Veja-se o pescador que dá leite com uma seringa às crias que perderam a mãe, a mulher que faz panelas de massa com carne para distribuir pelas ruas, ou o homem que percorre os becos para alimentar dezenas de gatos, como forma de terapia pessoal.

"Em Istambul, há ainda um forte sentido de comunidade, que se estende ao cuidar dos animais. Para os cães de rua são tempos mais difíceis, porque se trata de animais maiores e abandonados, enquanto que os gatos de rua não o são. Na Turquia, espera-se menos do governo, por isso as pessoas fazem-no por elas próprias", confessa a realizadora.

A anatomia das cidades

Já dizia a canção de Os Aristogatos que "everybody wants to be a cat". Mas que tipo de gato: doméstico ou de rua? "É um dilema que temos como seres humanos: devemos deixar os nossos animais, ou mesmo os nossos filhos, vaguearem livremente e terem experiências que não supervisionamos? Ou devemos mantê-los "seguros" em ambientes fechados e certificarmo-nos de que nunca estão expostos ao perigo? Mesmo se pensarmos na diferença geracional entre o modo como as crianças crescem agora, principalmente em interiores e com atividades planeadas - incluindo muita televisão -, e como cresciam há duas gerações, correndo livremente pelas ruas o dia inteiro até à hora do jantar, é uma questão que temos de colocar a nós próprios. Até sobre o modo como vivemos a vida", reflete Ceyda.

A memória da relação especial que esta turca, radicada nos Estados Unidos, teve com os gatos em Istambul leva-a a sentir estranheza perante a extinção desses animais de rua noutros países. Não entende como é que a sua existência pode ser vista como pragas a eliminar ou controlar. "Há algo de encantador, mesmo que às vezes seja triste para nós humanos, nesta forma de vida livre e espontânea dos gatos. Da minha parte, sinto um grande conforto em ser humilde e ter outros animais à minha volta, para além do animal humano."

Por gostar tanto de os observar na expressão do livre-arbítrio, a realizadora inventou, com o diretor de fotografia Charlie Wuppermann, uma cat cam, que permitiu aos operadores de câmara aproximarem-se o mais possível do chão, à altura do tornozelo, para captar os gatos como se fossem pessoas. Por essa razão, Gatos é uma verdadeira experiência da anatomia da própria cidade, esse espaço mágico que é trilhado por seres que transportam a felicidade dentro deles.

Entenda-se, assim, que a sua presença é também uma questão de equilíbrio público: "Sabemos cada vez mais acerca dos benefícios do contacto físico com os animais. E, sobretudo, sabemos quão importante é manter a nossa saúde nestes tempos em que a maior parte do nosso contacto físico está limitado aos aparelhos eletrónicos. Por isso, acredito que há uma grande vantagem em equilibrar a energia a que estamos expostos."

Tendo em conta a mudança constante da fisionomia das cidades, perguntámos ainda a Ceyda Torun se a realidade que registou terá forma de sobreviver. A resposta é política, idealista e melancólica: "Não faço ideia do que o futuro trará a Istambul, mas o que sei é que as pessoas estão mais conscientes de quão singular é esta relação, e enquanto soubermos fazer o nosso próprio caminho, e não aquilo que a Europa ou o resto do mundo nos queira impor, estaremos bem. A minha principal esperança é que possamos trabalhar para tornar a vivência nas cidades mais saudável - tanto os gatos como as pessoas beneficiarão. Mas, se isso não acontecer, foi pelo menos gratificante ter conseguido fazer este filme e documentar um modo de vida que valorizo tanto."

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