O Mediterrâneo que não se vê nos postais

Venceu o Urso de Ouro e é o pré-candidato da Itália ao Óscar. "Fogo no Mar", de Gianfranco Rosi, um olhar sobre a realidade dos refugiados, é uma das estreias fortes da semana
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Lampedusa. O belo nome de uma ilha italiana convertida em cenário trágico da imigração massiva. Parece que Gianfranco Rosi quis filmá-la com o mesmo ritmo com que se pronuncia a palavra, uma serenidade a contrastar fortemente com o desespero diário de milhares de refugiados vindos de África em direção à miragem de uma nova vida na Europa. Fogo no Mar, o filme que resultou dessa vontade de observar apoliticamente os movimentos de Lampedusa - do lado do mar (Mediterrâneo) e do lado da terra - foi o vencedor do Urso de Ouro na 66ª edição do Festival de Berlim, com um júri presidido por Meryl Streep, e chega hoje às salas portuguesas, com a urgência da atualidade que encerra.

Dizer que este documentário é apolítico não surge como uma opinião e nem tão pouco tem um sentido linear: foi o próprio realizador que afirmou o seu trabalho como uma "testemunha" dos horrores que nos passam ao lado, e que, no fundo, são responsabilidade de todos nós. Sem comentário voz-off e com a câmara fixa a maior parte do tempo, para deixar entrar uma realidade lancinante, Fogo no Mar é um filme cujas opções formais não sublinham a questão política - ela está bem à vista, bem pronunciada. Haverá maior impacto do que o causado pelas imagens?

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Por falar em impacto, o que sucede diante de nossos olhos é precisamente uma justaposição de mundos distintos, na mesma paisagem de catos e árvores barrocas, envolvida pelo ganha-pão dos pescadores locais, esse fatal mar Mediterrâneo, que é também o campo de batalha e cemitério de muitos homens, mulheres e crianças. Em terra, Samuele, o rapaz de 12 anos que protagoniza a vivência tranquila na ilha, entre a sábia instrução dada ao amigo de como fazer uma fisga, e um olho preguiçoso, que os médicos estão a tratar com um método antigo, é a representação da própria Europa, que não vê o que está à sua frente... E podemos ir mais longe. A princípio, sem uma relação muito concreta com o drama dos refugiados, esta personagem, no seu plácido quotidiano - que envolve a cena impagável de uma consulta em que se queixa de ansiedade, perante o médico melancólico e pacífico que trata os imigrantes - acaba mesmo por carregar os indícios do mal-estar social. Qualquer coisa que lhe escapa à consciência, mas que se entranha no corpo.

Rosi, realizador do igualmente premiado Sacro GRA (2013, Leão de Ouro), demora-se tanto na contemplação desta existência cómica como na tragédia acompanhada por quem trabalha nas operações de salvamento. Aqui temos rostos de imigrantes que nos interpelam silenciosamente, com a deriva espelhada no olhar, e esse contacto visual é difícil. Uma dificuldade semelhante à do confronto com as imagens descobertas do Holocausto em A Noite Cairá (2014), de André Singer, e que, por isso mesmo, se tornaram imperativas de encarar. No caso de Fogo no Mar, elas gritam o tempo exato a que correspondem.

Retirado de uma canção siliciana, o título do filme - Fuocoammare - revela-se numa cena de "discos pedidos" na rádio local, e o seu conteúdo é uma alusão ao bombardeamento de um navio italiano, durante a Segunda Guerra Mundial, no porto de Lampedusa. Hoje a catástrofe é outra, e sem fim à vista.

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