"O frenesi do facebook, da blogosfera, do netflix, tem a sua génese na Horta"
O escritor açoriano Joel Neto regressou à gráfica três anos depois de Arquipélago, desta vez tendo a ilha do Faial e a II Guerra Mundial como epicentro. Por lá passam Saint-Exupéry e estrelas de cinema da época - e isto não é ficção
Sentámo-nos na esplanada do Jardim da Parada, em Campo de Ourique, Lisboa. O bairro onde mora José Filemom Marques, uma das personagens de Meridiano 28. Na apresentação do novo livro, o escritor João de Melo disse que esta é uma obra "que converte a Horta num lugar de todo o mundo". Eis uma história com várias latitudes, que saltita no tempo, entre os anos 40 e a atualidade, com escalas em Praga, Bristol, Friburgo, Porto Alegre, Nova Iorque. E uma cidade da Horta, como imenso cais de descobertas e de gentes.
Sentiu-se dono do tempo ao escrever este livro?
Estava a ler a entrevista do Salman Rushdie e ele dizia que houve um tempo na carreira dele em que controlava tudo, sabia de onde vinha para onde ia, e hoje passado este tempo todo, já com 70 anos a viver em Nova Iorque e depois de todos os livros que publicou, tem uma ideia muito difusa do que pode acontecer. Do dilema central da personagem e depois do que acontece. Eu não cheguei a esta fase, eu sou o ditador das minhas personagens. Mas há uma coisa que os ditadores não podem fazer sobre os seus súbditos, que é impedi-los de sonhar e de pensar. E eu acho que os meus livros são aquilo que eu como ditador não consigo evitar que as minhas personagens sonhem e pensem, o livro é tudo aquilo que não planeei sendo que eu planeio muito. Apesar disso ele consegue ganhar um grau de liberdade que me escapa ao controlo. É essa a essência do livro.
Os Açores, que podiam ser Europa mas não são, podiam ser América mas não são, podiam ser modernos mas não são totalmente, podiam ser antigos mas não são
Quando começa vai escrever sobre o Faial e sobre a II Guerra Mundial. O que lhe escapou?
Os meus livros nascem de um padrão, não nascem de uma personagem só. Todos os dias eu tenho ideias para histórias, muitas anoto, muitas abandono, muitas acompanham-me ao longo de dias, muitas acompanham-me ao longo de anos. A certa altura, começa a definir-se um padrão entre essas histórias. Começa a definir-se um padrão em torno de uma personagem, de um fio condutor, e o momento em que o padrão se começa a desenhar começa o livro. A relação dos Açores com a II Guerra Mundial interessa-me desde sempre, desde que li os ensaios do António José Telo, que são extraordinários. São ensaios não sobre a importância que os Açores tiveram mas que podiam ter tido. Eu gosto muito desta expectativa frustrada em geral, em abstrato, aquilo que uma coisa podia ter sido e não foi. E gosto disto em particular no caso dos Açores, que podiam ser Europa mas não são, podiam ser América mas não são, podiam ser modernos mas não são totalmente, podiam ser antigos mas não são, gosto desta incompletude que os Açores têm que é uma espécie da sua própria completude. A personagem do Hansi Habke, que é o fio condutor do livro, foi a que veio dar cor, tom, cheiro, da Horta dos anos 40 que me fascinava.
Porquê?
A participação dos Açores na II Guerra Mundial acontece em três ilhas: Ponta Delgada, Terceira (Lajes) e na sua vertente marítima, que era a que me interessava mais, na Horta (Faial). Além disso interessava-me também uma outra coisa que é o facto de a Horta estar desde esse tempo à procura de uma identidade. Desde os anos 40, desde os tempos de Nemésio, da publicação de Mau Tempo no Canal, que a Horta não sabe bem para onde vai. Fechado o ciclo da telegrafia, ela que esteve tanto tempo na proa do desenvolvimento do ocidente deixou de saber para onde ir e manifestamente o tempo dos veleiros é um tempo pueril e passageiro. O tempo dos veleiros que se vive na Horta, quatro, cinco décadas a esta parte, se calhar pode-se comparar ao tempo que Lisboa vive neste momento, a este frenesi exultante de desenvolvimento, e de interesse e de alegria, que no entanto se tiver se ser substituído de repente por alguma coisa, não é substituível por nada a não ser pelo vazio. Creio que é esse o dilema da Horta.
Desde os anos 40, desde os tempos de Nemésio, que a Horta não sabe bem para onde vai
Essa incompletude de que fala pode ajudar a explicar que grandes pedaços da história dos Açores e, neste caso, da Horta sejam desconhecidos para muita gente, como para um dos protagonistas da história, José Filemom Marques?
Não ter havido ratificação do outro? Às vezes é preciso que o outro nos diga tu existes para saberes que exististe, sim. Foi numa conversa com o meu amigo António Bulcão, escritor açoriano, que comecei a pensar nos cabos submarinos, nas potencialidades desta génese da comunicação global. Em 70 anos ela nasceu, metamorfoseou-se, estilhaçou-se por completo e neste momento há um ruído enorme. A génese está nestes cabos submarinos, na telegrafia em particular e a sua divulgação mundial acontece através dos cabos submersíveis. E de repente voltamos atrás 70 anos e estamos a voltar à génese de uma coisa que hoje é a rainha do império, a imperatriz do mundo em que vivemos. Os nossos avós já eram homens feitos, os nossos pais estavam a nascer nessa altura. É tão recente quanto isso, o frenesi do facebook, da blogosfera, da televisão por cabo, do netflix, tudo isso teve a sua génese há poucas décadas e passava pela Horta.
E se não passasse pela Horta não existia no Atlântico..?
É fascinante que isso tenha permanecido até hoje por tratar na literatura. Tendo em conta o milagre que estava por traçar e os testemunhos de que havia registo - opúsculos, memórias, fotografias, casas -, tudo isso estava mais ou menos catalogado estava à espera que chegasse o romancista e que fosse capaz de traçar toda essa identidade, toda essa multiplicidade. Não só o exotismo mas sobretudo a convivência sã entre nações inimigas. Os primeiros três anos são especialmente interessantes porque se trata de nações inimigas que, na Horta convivem, em paz, em harmonia, em felicidade. Talvez numa espécie de alienação, talvez numa espécie de loucura. Pessoas de nações inimigas que chegavam a juntar-se para assistir a combates militares dos seus países no mar em frente, empoleirando-se na doca como quem está no anfiteatro, a assistir à II Guerra Mundial. Isto é qualquer coisa de fenomenal.
Tendo em conta o milagre que estava por traçar e os testemunhos de que havia registo - opúsculos, memórias, fotografias, casas -, tudo isso estava mais ou menos catalogado estava à espera que chegasse o romancista
Junta personagens reais a personagens fictícias. A realidade era demasiado boa para não ser usada?
É um jogo recorrente nos meus livros, invocar personagens reais, trazendo algumas para dentro do romance. É uma das dimensões lúdicas do romance.
Isso não vem da faceta de cronista?
Talvez venha. Nós somos múltiplos e já não conseguimos contrariar a nossa natureza. Eu fui jornalista durante muito tempo e foi preciso matar o jornalista que há em mim, porque o jornalista procura a verdade, procura a certeza, o escritor procura a dúvida, procura formular uma pergunta, não procura a resposta. As forças às vezes são opostas mas eu já estou a fazer as pazes com essas facetas que há em mim.
Como fez a pesquisa?
Fiz uma pesquisa bastante aturada. Eu nunca foi um daqueles colecionadores da II Guerra Mundial. Eu não sabia de cor a cronologia da guerra e tive de fazer uma investigação mais aturada. Tentei obter uma leitura da história a partir daquilo que eu li e de leituras que me pareceram honestas, e falei com colecionadores de informação para perceber as suas arrelias, as suas obsessões, e finalmente pedi a dois historiadores/colecionadores que me fizessem uma leitura crítica do manuscrito de maneira a despistar a possibilidade de erros historiográficos, tentei mitigar o mais possível as possibilidades de erro histórico. Não quero contar a História, quero colocar a História ao serviço da narrativa
Nos Açores, no caso o Faial, pelo facto de ser uma ilha, local de partidas e chegadas, as emoções vivem-se ampliadas?
A Horta é realmente um lugar de partidas e chegadas e eu durante muito tempo pensei no facto de não haver na literatura portuguesa a mesma tradição de chegadas que existe sobre partidas, e isso é verdade, e tentei tratar as chegadas no Arquipélago. A Horta é uma coisa diferente. Trata-se de uma partida em direção a um lugar que não é nosso e um regresso em direção a um lugar que também não é nosso. Sobretudo com estas pessoas: Roy Groves, um inglês, filho de ingleses, criado no Faial; Hansi Habke, filho de uma portuguesa com um alemão - na verdade faialese mas que toda a sua juventude é conotado com a realidade do nazismo e com o que possa haver nele de cruel e estético... E este é outro tipo de partidas e chegadas. Eu acho que estes backpackers que chegam à horta e que partem da Horta todos os dias, e que vão beber um gin ao Peter Café Sport, não são tão distintos daqueles telegrafistas que viveram lá durante 40/50 anos. Aqueles homens estiveram lá às vezes também só uma semana, mas essa semana demorou o tempo de cinco décadas...
Na capa do livro, por baixo do nome, está escrito "O poder redentor das grandes histórias". Acredita que as nossas histórias e até a História do mundo precisa destes momentos de redenção?
A expressão não é minha, é do meu editor. Eu nunca chamaria uma grande história à minha história. Agora eu acredito que as grandes histórias têm um poder redentor e acredito que nós precisamos de redenção. E acredito que as histórias são um dos caminhos para a redenção, porque nos colocam em contacto com outras possibilidades, com aquilo que não fomos, que podíamos ter sido, com aquilo que talvez ainda possamos ser, com aquilo que o mundo não foi, podia ter sido e talvez ainda possa ser, e o mundo não é tão passível de salvação como é nas páginas de um livro. Eu, com a idade, estou a ficar francamente mais otimista e se calhar é o facto de estar a dedicar ao ato de contar histórias cada vez mais tempo não só do meu mês, da minha semana, mas do meu dia, que me está a tornar mais esperançado. Acredito que sim.
O tempo dos veleiros que se vive na Horta, quatro, cinco décadas a esta parte, se calhar pode-se comparar ao tempo que Lisboa vive neste momento, a este frenesi exultante de desenvolvimento, e de interesse e de alegria, que no entanto se tiver se ser substituído de repente por alguma coisa, não é substituível por nada a não ser pelo vazio
Apresentações de Meridiano 28
7 de Junho (Ponta Delgada, ilha de São Miguel): Livraria Solmar, 19.00, apresentação de Vamberto Freitas
8 de Junho (Madalena, ilha do Pico): Atlântico Teahouse, 13.30
8 de Junho (Horta, ilha do Faial): Peter Café Sport, apresentação de Luís São Bento (hora a confirmar)
9 de Junho (Angra do Heroísmo, ilha Terceira): Grande Auditório do CCCAH, 21.00, apresentação pelos alunos das escolas da ilha Terceira
10 e 13 de Junho (Lisboa): Sessão de autógrafos na Feira do Livro de Lisboa. Stand Cultura Editora, 16.00