Escândalos sexuais são o início do fim do pesadelo de Hollywood
No caminho para o topo da carreira como produtora em Hollywood, Jordana Mollick passou por vários tipos de assédio sexual. Entrou na indústria aos 22 anos, acabada de sair da universidade, e assimilou o que toda a gente sabia: é isto que acontece. É a norma. "Percebo porque é que muitas mulheres não disseram nada enquanto não houve um grupo delas que falou", diz ao DN, agora numa posição de poder - tem a sua produtora Haven Entertainment e esteve por detrás de êxitos como Hello, My Name Is Doris (com Sally Field) e Night Owls (com Adam Pally).
"Parte disto é a norma social. Trabalhamos assumindo que isto é normal e temos de o aguentar", faz questão de sublinhar. "Nós, como mulheres nesta indústria, estamos habituadas a entrar numa sala cheia de homens e sentir medo, não apenas de assédio sexual, mas medo de dizer a coisa errada ou de não sermos ouvidas nem respeitadas." É isso que Jordana espera que mude mais rapidamente a partir de agora, que está aberta a caixa de Pandora dos escândalos sexuais em Hollywood.
Faz pouco mais de um mês que o The New York Times expôs o vasto historial de assédio e abuso do produtor Harvey Weinstein, e desde então foram descobertos dezenas de outros escândalos envolvendo homens poderosos. Desde Kevin Spacey a Charlie Sheen, Brett Ratner, Jeffrey Tambor, Ed Westwick, James Toback, Andy Dick, Jeremy Piven, Mark Halperin, entre muitos outros, incluindo o comediante Louis C.K. nesta semana. As revelações estão a sair em catadupa e todos os dias num alargado espectro de abusos. Nalguns casos comentários inapropriados, noutros propostas indecentes, noutros apalpões não consentidos, noutros violação consumada. Há homens e mulheres entre as vítimas, denotando que não é um problema de apenas um género.
"Há uma pandemia em Hollywood que tem de ser encarada no que respeita a violência sexual", diz o presidente da organização Hollywood Now, John Erickson. "As vítimas e os ativistas já não podem ficar em silêncio sobre o problema de longa data do comportamento predador."
A questão é que muitas destas histórias já tinham sido denunciadas antes e era do conhecimento de toda a gente na indústria que aconteciam. Porque é que só agora estão a ter repercussões reais?
O efeito Trump
"A eleição de Donald Trump e o movimento de resistência, o que se viu com a Marcha das Mulheres, gerou um efeito bola de neve", sugere David Villar, ator que está em Hollywood há 13 anos. "Há sempre uma confluência de fatores, nunca é apenas um. A tecnologia está relacionada com isto, em simultâneo com Trump." Para o ator, que trabalhou em séries como Grace and Frankie (Netflix) e The Young and the Restless, a predominância das redes sociais tornou-se uma plataforma de denúncia com efeitos potentes. Sublinha ainda a importância do jornalismo de investigação e o precedente estabelecido com o caso de Bill Cosby.
"Há um efeito importante da vergonha pública. O efeito de massa crítica. Antes podiam dizer "quem é que vai acreditar em ti?", mas as mulheres ganharam poder e agora podem falar. As pessoas também estão mais disponíveis para ouvir", considera.
Saber se a eleição de Trump foi ou não o principal catalisador para a mudança é difícil, e as opiniões divergem. "Pessoalmente, achei que o facto de ele ter não ter sofrido consequências com as gravações do Access Hollywood foi incrível", diz ao DN Susan Anton, atriz e cantora que está na indústria há 40 anos. "A sério? Vão pô-lo no mais alto cargo da nação apesar de ele ter um desprezo total pelas mulheres? Talvez seja o efeito de "não mais"", sugere. "O que quer que seja que o trouxe, já vem tarde."
Jordana Mollick refere que o presidente ofendeu muita gente e gerou um sentimento de impotência a nível global - mas não local. "A mudança, em geral, começa numa comunidade e isso está a inspirar as mulheres a encontrarem as suas vozes e os homens a apoiarem-nas." A produtora refere também que há anos são publicados estudos e estatísticas sobre a desigualdade em Hollywood e a falta de realizadoras. "As mulheres estão lentamente a tornar-se mais poderosas e menos uma minoria nesta indústria, a sentir que podem falar", indica. "Mas penso que o que está a acontecer no nosso país é parte disto."
É também esta a opinião de Ben Rovner, CEO do estúdio de castings Space Station, o maior da indústria. "Tudo tem um momento de fervura e na maioria das situações é preciso uma, duas, três pessoas corajosas abrirem a boca e dizerem que isto não é correto, não me vou calar até vocês me ouvirem", afirma, considerando que a génese deste movimento começou antes da eleição de Donald Trump. "Todas estas questões subterrâneas que não abordámos como país permitiram-lhe ser eleito presidente", acredita, criticando o que se passou em Hollywood, que gosta de se posicionar como uma indústria de liberais onde as minorias são bem-vindas. "Andámos aqui a fechar os olhos e a fingir que estava tudo bem, e depois gritamos com o outro lado da barricada sobre coisas com que não concordamos. Faz tudo parte do mesmo problema."
Os estúdios Space Station foram criados precisamente para fornecerem um espaço seguro e confortável para os atores irem a audições. "Quando um diretor de casting é acusado de ter sido inapropriado, no momento em que temos mais do que uma acusação dizemos-lhes que não pode voltar", assevera Rovner. "Se o ator quiser ir mais longe em termos legais nós apoiamos, mas nunca chegou a esse ponto."
Edward Peña (nome alterado para proteger a sua identidade) trabalhou dez anos numa estação de televisão. "Vi mulheres serem tocadas de forma inapropriada, ouvirem coisas que não se dizem a ninguém que se respeita, a irem chorar para a casa de banho e a andarem miseráveis", conta. Um dia, chegou ao trabalho e toda a equipa de liderança, que continha mulheres, tinha sido substituída por homens. Foi nesse dia que saiu.
O fim do sonho de Hollywood?
A onda de escândalos de assédio está a acabar com o sonho de Hollywood, mas só para aqueles que estão a ser denunciados. "Se o sonho de Hollywood tem alguma coisa que ver com que se tem passado, é mais um pesadelo do que outra coisa", resume Ben Rovner. "Quanto mais coisas forem reveladas, mais teremos noção delas e poderemos parar com as piadas veladas nos Óscares e em programas de televisão. Quanto mais reconhecermos que isto acontece e não devia, mais o verdadeiro sonho de Hollywood se torna possível", diz.
A atriz portuguesa Joana Metrass, conhecida pela série Era Uma Vez, refere que já teve episódios de assédio e é importante que se fale disto. "Sinto-me bastante mais segura neste momento com esta onda de mulheres a unirem-se para falar do que lhes aconteceu, porque não é que, infelizmente, aconteça de um momento para o outro uma mudança de mentalidades, mas neste momento estão todos de certeza com muito mais medo e pensam duas vezes antes de fazer alguma coisa porque não sabem se vão sair impunes."
A Hollywood Now também apelar à proteção dos trabalhadores da indústria que foram vitimizados por homens poderosos. "À medida que mais pessoas contam as suas histórias, Hollywood vai transformar-se e tornar-me um sítio mais seguro e equitativo para indivíduos de todas as classes sociais", diz ao DN o presidente John Erikson.
Para David Villar, talvez o que se seguirá seja uma versão diferente. "Enquanto isto for o centro de produção do país, vai continuar a ser o sonho de Hollywood", diz, esperando que "esse aspeto" negativo do sonho se dissipe.
A visão de Catherine Gray, presidente da 360 Karma (organização para mulheres em Hollywood), é muito positiva. "Não é fantástico? Agora as mulheres estão a dizer que já não vão ser desrespeitadas nem manipuladas nesta indústria, e vai espalhar-se a outras." Todos acreditam nisto: a cidade dos anjos é apenas a ponta do iceberg.
Jordana Mollick também acha que o que está a acontecer é excelente. "É uma coisa boa para o sonho de Hollywood. É bom que as coisas horríveis que aconteceram estejam a ser expostas", afirma. "Espero que isto seja um aviso e que a minha assistente, que é mais nova do que eu e está a começar, já não conheça uma indústria em que o assédio sexual é tolerado."
Susan Anton, do alto dos seus 67 anos, não tem dúvidas: "É a nova era do movimento de libertação das mulheres que começou nos anos 1960", afiança. "É o novo paradigma, a nova fronteira."
Kika Magalhães: "Dá poder às mulheres"
A atriz portuguesa Kika Magalhães, 32 anos, já viveu em Barcelona, Londres e Nova Iorque. Mudou-se para Los Angeles em 2016 e conquistou enorme sucesso com o filme The Eyes of My Mother, que lhe valeu a nomeação para melhor atriz nos Chainsaw Awards. Está a gravar um filme independente e vai produzir a sua própria longa-metragem em 2018.
Qual foi a sua reação quando se soube destes escândalos?
De choque, apesar de já saber que acontecia. Também de raiva, porque é algo que aconteceu comigo e, tal como muitas destas mulheres, nunca falei sobre isso. Por medo do que as pessoas possam pensar ou do que possa acontecer por ter falado.
Que tipo de episódios lhe aconteceram?
Ofereceram-me papéis em filmes porque queriam mais do que isso. Houve um produtor mais velho, casado, com filhos, que me convidou para o quarto de hotel para falar de um filme. Confiava nele, que dizia querer ajudar-me, ser um mentor, e fui. Cheguei lá e ele ofereceu-me drogas. Consegui vir-me embora. Depois acabei por trabalhar no filme.
Porquê?
Porque era a minha oportunidade, era a minha carreira. Calculei que não iria insistir, porque lhe disse não e nem me sentia confortável. Era uma má sensação, de que tinha sempre os olhos em cima de mim. Foi difícil. Depois aconteceu com um ator que tem nome na indústria e foi duro, porque estávamos a viver perto do set das filmagens. Uma vergonha.
E em castings?
Tive um por Skype em que o diretor me pediu para me despir e ficar em topless. Neguei e não consegui o papel, nem sei se existia filme. Quando se é nova na indústria e não se conhece nada se calhar vai--se ao Craigslist e é só fraudes. Agora tenho bons managers que me protegem.
Conversa com outras atrizes sobre isto?
É muito frequente. Acho que 99% das mulheres já o sofreram, não só atrizes mas em todas as indústrias, às vezes até nas nossas casas com familiares.
Porque acha que só agora isto está a ter repercussões?
Talvez o efeito das redes sociais. O Harvey Weinstein foi despedido não pelo assédio sexual mas por ter sido desvendado, porque eles todos já sabiam. Talvez os tempos tenham evoluído e as pessoas estejam mais abertas a isso: não há tanta discriminação contra as mulheres, o cinema está mais aberto a realizadoras e atrizes em papéis principais.
Estes escândalos vão afetar o sonho de Hollywood?
Não. É espetacular, porque isto pode mudar muita coisa. Tenho a certeza de que agora todos os homens vão ter muito mais cuidado quando estiverem em sets de filmagens ou em castings. Mesmo que seja só "oh, és linda", vão pensar duas vezes antes de falarem. Dá poder às mulheres.