O escritor que foi "feliz" em Auschwitz

Em 2002 o escritor Imre Kertész recebe o Nobel da Literatura. Na Hungria, ninguém deu muita importância ao autor que vivia na Alemanha.
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Se houvesse que definir numa única palavra a grande razão de escrever para Imre Kertész, o Prémio Nobel da Literatura de 2002 que ontem faleceu aos 86 anos, ela seria: totalitarismo. Uma palavra que, mesmo tendo Kertész largado a ficção há alguns anos, não deixou de estar no seu vocabulário, pois a situação dos refugiados que estão a chegar à Europa em massa provocava-lhe uma reação contra a União Europeia de uma dimensão menor mas tão grave como a que lhe marcaram a vida para a literatura: o nazismo e o comunismo.

Totalitarismos bem diferentes um do outro, sendo que o segundo só lhe permitiu publicar um primeiro livro em 1975, 46 anos após nascer em Budapeste e 32 após ter sido deportado para os campos de concentração de Auschwitz e de Buchenwald, de onde só saiu depois do fim da II Guerra Mundial. Regressado à capital húngara, Kertész veio a confrontar-se com o um regime político que o fará perder o emprego de jornalista quando começa a criticar abertamente o poder. Noutra frente de protesto que decide abrir aos leitores e críticos do seu país, face à má apreciação da sua obra no país, o escritor exila-se na Alemanha, tendo-se dedicado a traduzir Nietzsche, Freud, Wittgenstein e Elias Canetti para a sua língua.

Coincidentemente, quando o Prémio Nobel foi anunciado, Imre Kertész estava radicado na Alemanha e repetido a frase de Kennedy "Eu sou um Berlinense", o que irritou ainda mais a opinião pública húngara em relação à sua obra. Não deixou de dizer numa entrevista que Budapeste "estava balcanizada", afirmação que dividiu opiniões e foi considerada uma expressão tão irónica como azeda. Em pouco mais de vinte e cinco anos, Imre Kertész escreve vários livros - sempre com a sua publicação dificultada pelo regime - que numa ascensão tão meteórica como polémica lhe valeram o Nobel. Sem Destino é o livro com que se apresenta aos leitores, num tom muito autobiográfico pois relata a experiência de um adolescente de 15 anos em três campos de concentração. Segundo Kertész, a experiência dos campos de concentração é "como qualquer outra na nossa existência", sendo que sempre se recusou a aceitar o livro como autobiográfico, mesmo que fosse uma recriação muito próxima do seu passado.

Quanto à justificação para a outorga do Nobel, a Academia foi muito clara: "É uma escrita que suporta a experiência frágil do individual contra a bárbara arbitrariedade da História". Acrescentava: "O escritor pratica uma tradição filosófica em que a vida e o espírito humano são inimigos, deixando os seus leitores na fronteira com as emoções compulsivas que inspiram uma liberdade de expressão muito particular". Entre as reações à morte de Kertész, após ter sido afetado pela doença de Parkinson nos últimos anos, está a do governo húngaro - "a sua morte não afeta apenas a Hungria mas todo o mundo" - e, também, a do alemão que, segundo a ministra da Cultura, considera que "apesar das experiências amargas sempre mostrou estima pelo nosso país".

A Imre Kertész não faltam declarações polémicas. Uma: "Sou dos judeus que Auschwitz transformou em judeus". Outra: "Os meus momentos de felicidade mais radical [foram em Auschwitz]. Estar perto da morte é também uma forma de felicidade. Sobreviver torna-se a maior liberdade de todas".

Grande leitor de Albert Camus e de Jean-Paul Sartre, Kertész nunca aceitou ignorar o destino do indivíduo num ambiente totalitário. Particularidades que a investigadora literária e tradutora de húngaro para português, Piroska Felkai, realça ao analisar a conjuntura em que a obra de Kertész surge em 1975: "Para os leitores húngaros é um autor contraditório, mesmo que a obra seja um testemunho do que há de pior nos acontecimentos do século XX e que tanto marcaram a memória coletiva do país: o holocausto e o comunismo. No romance Sem Destino, o escritor utiliza uma visão fictícia diferente das narrativas existentes nos cânones literários, evitando o olhar moralizante e dramático tradicional em Primo Levi ou Elie Wiesel. Imre Kertész considerava difícil a partilha da experiência do holocausto e isso era difícil de aceitar na Hungria nos anos 70. Mais tarde, as análises mais especializadas reconheceram o seu valor mas os leitores só lá chegaram com a atribuição do Prémio Nobel." Para Felkai, é compreensível a dificuldade em entender livros "que têm um estilo narrativo muito inovador, com uma observação fria e objetiva e sem o tom patético e trágico mais habitual, que sublinha uma aproximação irónica aos acontecimentos".

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