O Convento da Arrábida é um portal do tempo. E tem guardião

Quirino Almeida, que ali viveu 22 anos, faz uma visita guiada ao lugar de 1542 que ainda guarda as celas dos frades, um relógio oferecido por D. João V e um sítio onde Sebastião da Gama escrevia
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A Arrábida estava coberta pela luz do sol. Os ciclistas subiam a serra a custo, e quase sempre em bando. Confirmamos com um deles o lugar do Convento de Nossa Senhora da Arrábida. "Ainda tem de descer, e depois encontra-o à esquerda", explica, ofegante. Lá estava. Da estrada vê-se apenas o seu portão e um grande grupo de gente à porta. 9.50 e tudo pronto. José Rodrigues, da Caminhando, empresa que organiza a visita marcada para as 10.00, chama nome a nome, como se fosse de novo a escola. Entramos.

Foi este o Convento que D. João de Lencastre mandou erigir pela promessa que fizera ao seu amigo de infância, Frei Martinho de Santa Maria, franciscano castelhano. As paredes caiadas por que passamos foram erguidas em 1542, ano em que foi fundado o Convento. Mas é ao "senhor Quirino" que cabe contar estas histórias. Aproxima-se, blusão vestido, cruz de madeira que lhe pende ao pescoço, e encaminha o grupo: "Sigam as minhas costas que são muito bonitas." Logo nos adverte que não devemos pisar certo perímetro de chão: "Estão cá investigadores da Universidade Nova de Lisboa a lecionar um desses cursos macacos que há nas universidades."

Se até aqui quase se falou mais de Quirino Almeida do que do Convento, seu guia e outrora guarda, é por que há qualquer coisa de extraordinário sobre ele. Em primeiro lugar, porque viveu sozinho neste convento durante 22 anos: guardando-o, cuidando dele, recebendo quem o visitava. Em segundo lugar, porque conta tudo isto como se nada fosse. "Eu era técnico de telecomunicações e a empresa em que trabalhava fechou. Precisava de trabalhar, vim tomar conta disto primeiro, e depois fiquei para guia. Não tinha 50 anos" quando chegou. Agora tem 72, e já não vive ali.

Ao discorrer sobre os caminhos da (sua) serra da Arrábida, João Bénard da Costa falava do "senhor Quirino", escrevendo, quase dois anos antes de morrer, numa das suas crónicas no Público: "Agora que o Padre Manuel Marques está a morrer, [ele] deve ser, além de mim, o único que sabe onde eles ficam ou onde eles eram."

Deixar o século XXI

Chegamos à capela. Neste grupo da Caminhando, que organiza caminhadas e visitas guiadas do Aqueduto das Águas Livres, em Lisboa, às Berlengas, veem-se casais de mão dada, pais com seus filhos, raparigas, uma delas trouxe o cão. Sentamo-nos. Proibido fotografar. Sem abébias. "Às vezes quando andamos nestas visitas esquecemo-nos de arrancar das nossas cabeças o século XXI. Eu é que crio este portal do tempo para vocês passarem", diz Quirino, passeando-se. Explica que este convento de 25 hectares - de onde "a paisagem todos os dias é diferente" - é composto ainda pelo Convento Velho, que em maio estará novamente aberto ao público sob marcação. Esse, que não visitámos, é formado por quatro capelas, guaritas de veneração dos mistérios da Paixão, e algumas celas escavadas nas rochas. Grutas como aquelas em que viveram os primeiros quatro frades dali, Martinho de Santa Maria, Martinho Navarro, Diogo dos Anjos e São Pedro de Alcântara - "se esticassem as perninhas apanhavam chuva" - junto à então Ermida de Nossa Senhora da Arrábida, onde está hoje o Convento Novo.

Essa reclusão não foi muito diferente uma vez erigido o convento que visitávamos. Quirino conta como os frades se recolhiam cada um à sua cela humilde. Não havia convivência entre eles e naquele convento "não se celebrava missa". Quirino diz que isso lhes valia críticas da Igreja Católica. E não só isso: "O vigário foi ter com os duques de Aveiro [D. João de Lencastre foi o primeiro] para convencer os frades a andarem mais bem vestidos. Andavam com cores berrantes! Está escrito." Porquê? Ora, "quando chegavam aqui: sandálias fora, hábito rasgado para sentirem as agruras. Depois remendavam com o tecido que tinham. Deviam pegar nos sacos do pão, todos coloridos."

Visitamos a cozinha onde ainda corre água que "a rede hidráulica feita no século XVI leva das minas da serra". Visitamos um dos lugares em que Sebastião da Gama, que vivia na Arrábida, "escrevia os seus poemas", "dizia a Dona Joana", sua viúva. Passamos pelo relógio que D. João V ofereceu e que Quirino restaurou. Nas mãos da Fundação Oriente desde 1990, o convento esteve ao abandono quando as ordens religiosas foram extintas, em 1834, até a Casa de Palmela o comprar em 1863.

Saímos. A visita passa ainda pela praia de Alpertuche, no sopé da serra, e pela Lapa de Santa Margarida, antes de chegar ao Portinho. Naquela gruta, com cerca de 22 metros, esconde-se uma capela que data do século XVII. Nela, de um lado vê-se o mar; do outro, haverá um túnel secreto que, rezam as lendas, leva ao Convento de Nossa Senhora da Arrábida. "Um dia, noutro tempo, sei que nele estará um Peixe-Homem, que, era eu criança, me ensinaram que vivia no fundo da lapa dele, onde o seu rugido se confundia com o do mar." Escreveu-o Bénard da Costa.

Visitas ao Convento da Arrábida e à Lapa de Santa Margarida:

Com Caminhando: 17 de abril, 12 euro.

O Convento pode ser visitado sob marcação e a Lapa está sempre aberta

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