"No festival faço a ponte entre as várias gerações"

De ouvinte a apresentador e, desde há duas edições, presidente do júri, Júlio Isidro desfia as melhores recordações de festivais da canção.
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Terminado o papel de Jurisidro, trocadilho criado pelo próprio, prepara a emissão especial dos sete anos de Inesquecível, o seu programa na RTP Memória, o mais longo de uma carreira de 58 anos. "Tive uma insónia às cinco da manhã e escrevi o programa todo. Já disse o que era e o que precisava".

Quando celebrou 50 anos de carreira disse ao DN que valia não apenas pelo presente e o futuro, mas também pelo passado. No papel de presidente do júri do Festival da Canção, sente-se como garante da sua credibilidade?

Não vou ter a pretensão de dizer isso. Ficava-me mal, mas vou dizer-lhe que a circunstância de a RTP me convidar é uma honra e depois poder ostentar a última abencerragem em atividade e com uma boa qualidade de trabalho - já pedi à família para ao mínimo sinal de decadência me avisarem para ir embora no dia seguinte -, a RTP tem ali um senhor que viu o Festival da Canção de 1964 até agora e que tem cultura musical não só na área da música mais popular, mas também erudita. Já ouviu muita coisa, já fez muitas opções, já deu oportunidades a outros, há um trabalho longo. Faço a ponte entre as várias gerações e acho que sirvo bem o projeto.

Havia a renovação do formato, mas também era muito importante não alienar os espectadores que tinham sido sempre fiéis.

Devo dizer, sempre que a RTP resolveu apagar o passado deu-se mal. Sempre que decidiu que isto agora é só rapaziada nova, as pessoas descolam-se e a razão é muito simples: isto tem que ver com o nosso quotidiano. Se virmos na área da música, do teatro, do cinema, as pessoas têm sempre uma necessidade enorme de se identificar. A televisão não consegue ser radicalmente oposta do que é, é consequência. Há receitas que são sempre as mesmas. Podem ser trabalhadas sob o ponto de vista técnico, e devem. É uma enorme injustiça imaginar que as coisas nasceram do nada. Tudo tem um princípio e não foi tão mau como isso. Intitulo-me guardador de memórias e, quando vou ao arquivo, vejo programas muito bem feitos.

A quantas mudanças de fundo já assistiu no festival?

Eu gostava do formato em que a pessoa mandava a cassete completamente anónima em envelope lacrado, pessoas autorizadas ouviam as músicas, não identificavam sequer os intérpretes que não eram os mesmos que iam cantar, liam os poemas e escolhiam as cantigas. O festival era um dia e não havia eliminatórias. Assisti a editoras apresentarem os seus candidatos. Assisti a uma só pessoa cantar as cantigas todas [Carlos do Carmo, em 1976] e assisti ao formato de várias eliminatórias ao longo das semanas serem feitas no meu próprio programa, no ET, Entretenimento Total. Os esquemas de votação também foram sendo alterados, até estas chamadas de valor acrescentado. Este último formato parece-me bem, parece estar a dar resultados. Em duas eliminatórias e uma final, como já aconteceu em 2015, quando eu apresentei com a Catarina Furtado. Todos os formatos podem ser interessantes se as cantigas forem boas. E as pessoas não devem perder de vista que o festival se destina a escolher uma canção que nos vai representar na Eurovisão. A música portuguesa não começa nem acaba no festival e há muita gente anónima a fazer música muito boa. Recebo todas as semanas DVD ou links de gente à espera de uma oportunidade que não se importa nada de ir à RTP Memória.

Continua a ser o Júlio Isidro que lança pessoas.

Fui a Algés e um rapaz tirou um CD da mochila. Disse: "Tenho uma banda, gostava que ouvisse." Isso dá-me alegria e a certeza de que aquilo que ando a fazer tem valido a pena.

Quando apresentou pela primeira vez o festival?

Em 1991, com a Ana Paula Reis, quando ganhou a Lusitana Paixão. Foi feito na antiga FIL.

Recuando a 1964, de que se lembra mais?

Lembro-me bem de dois festivais. Um nos ecos do PREC, em que ganhou o Duarte Mendes e eu fui para a Suécia fazer a transmissão. Ele era capitão do exército, teve imenso sucesso, mas estava lá o Cliff Richard e não ganhou nem pouco mais ou menos. E lembro-me do festival do Carlos do Carmo, que acho absolutamente extraordinário. Ali passaram algumas das melhores canções que surgiram em Portugal e a forma de debate final para a escolha é o exemplo da democracia de base. A malta ali - poetas, músicos, artistas plásticos -a dizer de sua justiça. Depois houve uma votação e ganhou a Flor de Verde Pinho, do meu amigo José Nisa e Manuel Alegre. Devo dizer que o mais difícil era a escolha. A cantiga que ficou em último lugar, eu amo-a. É do Tozé Brito, Maria Criada e Maria Senhora, porque falava de um tema muito quente - a menina que vem da província para servir e depois põe o corpo ao serviço.

Não foi o primeiro, de 1964, que o surpreendeu.

O primeiro que me surpreendeu foi o de 1958, que ouvi na rádio. A canção não ia para lado nenhum e surgiu uma canção genial, Vocês Sabem Lá, de Maria de Fátima Bravo. Ouvi com os meus pais na Emissora Nacional, transmissão direta do Cinema Império, agora IURD. Com dois grandes atores a dizerem os poemas, as letras, antes das cantigas.

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