Ninguém provoca e convoca como Madonna
São duas horas sem respirar: música, dança, circo, política, efeitos especiais, confissões, sexo, muito sexo, tudo em palco ao mesmo tempo. A futura "lisboeta" volta a arrasar, na última digressão antes de se tornar sexagenária
Pouco importa que Madonna Louise Ciccone esteja a menos de um ano de se tornar sexagenária e que, para cumprir em pleno um espetáculo (não confundir com "um concerto", que é manifestamente outra coisa) de duas horas, a estrela máxima da pop dançante precise de três momentos em que o vídeo pré-gravado a substitui no palco - o show documentado neste DVD, que documenta o Rebel Heart Tour, décima digressão formal e nona pluricontinental desde o arranque em 1985, confirma que o domínio da artista ainda não merece contestação.
A cena, que vai mudar de ambiente por quatro vezes, permite-lhe exibir a perícia na provocação, o rigor nas coreografias, a assertividade ou o delírio nas considerações que vai tecendo, a utilização de múltiplas tecnologias sem delas se tornar refém, a sensualidade que ainda deixa a perder de vista as "meninas" que quiseram, em vão, disputar-lhe o trono.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Há, antes de mais nada, um gesto de coragem na escolha do alinhamento: quase metade das canções vem do álbum mais recente (Rebel Heart, 2015), proporção bastante superior à de tournées anteriores. Do princípio ao fim, lá aparecem Iconic, Bitch I"m Madonna, Holy Water, Devil Pray, Messiah, Body Shop, Heartbreak-city, S.E.X., Living for Love, Rebel Heart, Illuminati e Unapologetic Bitch. É verdade que, em quatro destes títulos (Iconic, Messiah, S.E.X. e Illuminati), a protagonista nem sequer está presente - nem por isso a cadência abranda. De resto, cedo se percebe que não haverá tempos mortos: o início do show é dominado por um ícone em fúria, o inesquecível Mike Tyson.
Guarda-roupa alucinante
O primeiro segmento parece um cruzamento de um filme de Kurozawa com um episódio de A Guerra dos Tronos, com assumidas influências - que continuarão à vista - dos espetáculos do Cirque du Soleil. A direção-geral do espetáculo coube a Jamie King, naquela que foi já a sétima colaboração desde que Madonna o "descobriu" em trabalhos de Michael Jackson e de Prince. As coreografias de Sébastian Ramirez ajudam a sublinhar a mudança para o terceiro andamento, de marca latina e capaz de nos mostrar Madonna e quem a cerca em especialíssimos trajes de luces (o que lhe valeu a contestação dos grupos antitourada), e para o quarto, reservado à festa e com momentos dignos da genial loucura de um Baz Luhrmann.
Não há poupanças de espécie alguma: a começar pelo palco, que se prolonga por um corredor "multiusos" que "desagua" num outro palco, mais pequeno, em forma de coração, colocado no meio do público; há elementos tão inesperados como uma escada metálica em caracol, que emerge desse palco menor (em Heartbreakcity) ou os altos mastros ondulantes que os dançarinos vão dobrando de forma a chegarem perto das cabeças dos espectadores; o alucinante guarda-roupa que todos os participantes visíveis vão utilizando, com mudanças quase número a número - bastará referir que estiveram envolvidas, com contratos que incluíam rígidas cláusulas de confidencialidade, as "casas" Moschino, Prada, Miu Mil, Gucci e Swarovski. O panorama é tão completo, ainda mais com a introdução, cronometrada ao segundo, dos vídeos que viabilizam o repouso da guerreira, que, muito de vez em quando, até se veem os músicos...
Se mais de um milhão de pessoas teve oportunidade de se deixar levar pela vertigem deste "carrossel" de emoções liderado por Madonna, com declarações de amor/ódio a Detroit, com confissões de dois casamentos falhados, com muitas provocações (e até desafios) sexuais, com memórias reservadas para um passado de glória (com as canções Burning Up, Vogue, True Blue, Deeper and Deeper, Like a Virgin, La Isla Bonita, Dress You Up, Into the Groove, Music, Candy Shop, Material Girl e Holiday, além de uma inesperada e bastante satisfatória versão de La Vie en Rose), quem recorrer ao DVD terá direito a uma vantagem. Os realizadores Danny Tull e Nathan Rissman não se limitaram a filmar um show ou a apresentar-nos uma canção inteira que resulte de uma só noite; preferem recorrer a uma montagem, também ela em ritmo imparável, que vai juntando sequências visuais de diferentes espetáculos, que permitem chegar ao "melhor de vários mundos".
170 milhões de euros
Feitas as contas, só pode lamentar-se que, ao contrário do que aconteceu com a Re-Invention World Tour, com a Sticky & Sweet Tour e com a MDNA Tour, esta digressão não tenha chegado em direto ao público português. Entre 9 de setembro de 2015, com a estreia em Montreal, Canadá, e 20 de março de 2016, com a despedida em Sydney, Austrália, realizaram-se 82 shows, que renderam quase 170 milhões de dólares. Com mais esta parcela, Madonna passa a ser a terceira classificada no capítulo das receitas de concertos em todos os tempos, só atrás dos Rolling Stones e dos U2. Mais: muitos foram os críticos que fizeram questão de partilhar uma mesma ideia - a de que, de uma forma invulgar, face a momentos anteriores, Madonna parecia muito mais divertida e comunicativa. Talvez por isso, desta vez, não tenha havido um único cancelamento... Warren Beatty disse-lhe, um dia, que ela não "tinha vida se a câmara não estivesse ligada". Agora, que tanto se tem falado do facto de Madonna procurar uma casa em Lisboa, quase apetece dizer que não precisa - porque a sua verdadeira casa é mesmo em palco.