Nicole Kidman, retrato de uma senhora a caminho do Oscar
Num belo acerto com os ponteiros da ficção, Nicole Kidman anunciou por estes dias que voltar a adotar uma criança não está longe dos seus planos. O assunto vem a propósito da mais recente personagem que interpreta no filme Lion - A Longa Estrada para Casa, a saber, uma mulher australiana que decide, juntamente com o marido, adotar duas crianças indianas. A história em que o filme se baseia é verídica, e é também uma ressonância da própria realidade da atriz, que tem dois filhos adotivos do primeiro casamento com Tom Cruise.
E porquê começar com esta questão íntima, um olhar pela carreira da atriz australiana? Muitas vezes, a experiência de vida de um ator pode elevar a sua representação para lá do papel bem estudado. Em Lion, Kidman é de uma doçura espontânea, madura, com validação no detalhe de cada gesto, na forma como procura iluminar o coração de uma criança desamparada. Ela é o íman das poucas cenas em que entra, e uma forte candidata à nomeação para o Óscar de melhor atriz secundária.
Efetivamente, a sua primeira nomeação ao Óscar - vale sempre a pena recordar - surgiu com a figura trágica de Satine, no musical Moulin Rouge! (2001), de Baz Luhrmann, mas nesse ano foi Halle Berry quem arrecadou a estatueta dourada. A justiça ser-lhe-ia feita no ano seguinte, através da sua impressionante composição de Virginia Woolf, em As Horas (2002), de Stephen Daldry, em que se despojou da beleza clássica que a caracteriza, para vestir a desconcertante melancolia existencial da escritora (particularmente trabalhada no rosto).
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Para trás, Disposta a Tudo (1995), de Gus van Sant, talvez seja o grande momento de emancipação numa carreira que começou demasiado conotada com Tom Cruise. No Festival de Cannes, fora de competição, o título de Van Sant atraiu um fascínio geral pela atriz que, no papel de uma psicótica, se revelava perfeitamente autónoma no seu talento. Recebeu então o primeiro Globo de Ouro, e sim, a partir daí estava disposta a tudo...
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Com efeito, o inolvidável e derradeiro filme de Stanley Kubrick, De Olhos Bem Fechados (1999), confere-lhe o absoluto golpe de asa, justamente lado a lado com Cruise, num labirinto do desejo que a libertou do que em si restava de timidez. Depois da experiência, e como era vontade manifesta de Kubrick, Kidman empenhou-se ainda mais em revelar a robusta faceta de atriz, para se desenvencilhar de vez da imagem de "esposa de Tom Cruise".
Presságio ou não, o facto é que a ascensão começou aí, e foi-se cumprindo nos referidos filmes que lhe valeram as nomeações e o primeiro Óscar, assim como em Dogville (2003), de Lars von Trier, Cold Mountain (2003), de Anthony Minghella, ou o subestimado Birth - O Mistério (2004), de Jonathan Glazer, que provocou burburinho no Festival de Veneza, pela cena em que Kidman aparece nua numa banheira com uma criança de 10 anos, que diz ser a reencarnação do falecido marido da sua personagem.
A verdade é que a angústia desta mulher não poderia ter tido melhor intérprete. Uma angústia que é igualmente vigorosa em O Outro Lado do Coração (2010), de John Cameron Mitchell (produzido pela própria atriz), baseado numa peça sobre a morte de um filho.
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Nos mais recentes trabalhos, e evitando juízos simplistas, digamos que Kidman tem sido muito superior a quase todos os filmes em que entra. Observe-se, por exemplo, Rainha do Deserto (2015), de Werner Herzog, o retrato biográfico da arqueóloga inglesa Gertrud Bell (1868-1926). Esta é uma das desilusões do ano de estreias, mas apenas pelo deslize do mestre alemão, que desperdiça uma oportunidade de carregar as linhas desse retrato na nobreza da atriz.
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Por falar em nobreza, que cedo se manifestou em Retrato de Uma Senhora (1996), de Jane Campion, a partir do romance de Henry James, é isso que ainda hoje salta à vista, acima de qualquer efeito narrativo. Campion viu esse perfil em Nicole Kidman bem no início da sua carreira na Austrália, e acertou em cheio.
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