Música nos palcos e também nas janelas. O Bons Sons a ocupar toda a aldeia de Cem Soldos
Passa um pouco das cinco da tarde quando aparecem Mitó Mendes e Sandra Batista à janela do número 217 do Largo do Rossio, em Cem Soldos. O sol fá-las franzir os olhos. "Já podemos?" Não, ainda não podem. É preciso, primeiro, interromper o soundcheck no Palco Tarde ao Sol, que fica mesmo ao lado, e depois, também, que se calem os altifalantes do largo. Agora sim. Sandra agita o adufe, Mitó começa a cantar "Gosto de viver despenteada". Interrompem, a rir. "Não é esta? Então qual é?" Começam de novo. O adufe e a voz. "Tenta andar nos meus sapatos, esforça-te para que te sirvam." Um grupo de pessoas junta-se ali à volta. São uns sortudos. As Señoritas cantam apenas um tema, despedem-se com "até já" e fecham a janela.
Este foi um dos concertos "pop up", apresentações curtas que acontecem sem aviso prévio num sítio "surpreendente", e que são uma das novidades desta edição do festival Bons Sons. "Gostamos muito deste festival, vimos cá todos os anos", comenta Sandra Batista, numa conversa descontraída com os jornalistas, na rua. "Ainda por cima tem um Palco Aguardela, o que nos diz muito", acrescenta Mitó Mendes. Não será nesse, mas no Palco Giacometti que as Señoritas vão atuar ao final da tarde, quando o calor já não queimar a pele e já não for preciso andar sempre à procura de um borrifador.
Até lá, aproveita-se para ouvir outras músicas. A tarde começou na igreja, como já é tradição, onde neste segundo dia de festival, a Música Portuguesa A Gostar Dela Própria apresentou Lucía Vives + João Raposo e ainda o saxofonista Filipe Valentim. Este não foi um concerto fácil, houve algumas desistências, mas há qualquer coisa naquele local que faz com que todos os concertos sejam especiais.
Cá fora, procura-se uma sombra. Há quem leia um livro, há quem dormite um pouco. No restaurante In Portugal, instalado nos quartos, na sala, no quintal de uma casa que estava abandonada, José Gonçalves almoça. Habitante de Cem Soldos, José, de 36 anos, esteve na produção do festival desde a primeira edição mas este ano está "do outro lado": em outubro abriu uma "tasca moderna" em Tomar e por estes dias trouxe a tasca para a sua aldeia. "Tivemos a sorte de encontrar este espaço. Há duas semanas estava cheio de erva e lixo, tivemos que limpar tudo mas valeu a pena." É que aqui os restaurantes nascem em quintais e casas e, como os concertos, às vezes até em janelas da aldeia.
Está Filipe Sambado com a sua banda no coreto do Palco Giacometti, a pôr toda a gente a dançar, quando Graciete e Céu avançam em passo apressado. "Já está na nossa hora, temos que ir trabalhar", avisam. São vizinhas, residentes em Cem Soldos e por estes dias trabalham na cozinha, preparando as receitas que o chef Fábio Silva escolheu para servir aos artistas que aqui vêm. Nos outros dias, Graciete, de 44 anos, trabalha na zona industrial de Tomar, e Céu, de 59 anos, trabalha em limpezas. "Mas nestes dias aviso as senhoras que não posso ir", ri-se. "Gostamos muito do festival, na nossa família toda a gente ajuda, o marido, os filhos, os primos."
O calor é uma das marcas do Bons Sons, o festival de música portuguesa que, todos anos por esta altura, fecha (literalmente) a aldeia de Cem Soldos, perto de Tomar. Enchemos a caneca numa das torneiras públicas e seguimos rua abaixo, até ao curral onde estão os burros de Miranda. À sombra das oliveiras, alguns festivaleiros descansam estendidos em mantas. É aí também que está Sofia, de 7 anos, a comer uma enorme sandes de cogumelos e espinafres, acompanhada pela mãe Vera e pela madrinha. "Esta é a primeira vez que vimos ao Bons Sons e estamos a gostar muito, é o sítio perfeito para vir com as crianças", conta Vera. Na sexta-feira até trouxeram o cão, mas hoje deixaram-no em casa a descansar. A Sofia já fez uma aula de percussão e está a planear um passeio de burro, quanto a concertos os seus preferidos até agora foram os Holy Nothing. "As pessoas estão completamente dentro do espírito, vê-se que gostam do festival, toda a gente é simpática", conclui Vera.
À medida que vai entardecendo começa a sentir-se uma aragem. O céu escurece, também, por causa do fumo que vem de um incêndio próximo (para já, ainda sem assustar os festivaleiros). Les Saint Armand ocupam o Palco Tarde Ao Sol, umas meninas distribuem cidras fresquinhas de uma das poucas marcas que se associou ao Bons Sons e Hélder Sucena, vestido de vermelho, com um lenço vermelho na cabeça, circula, imparável pelos vários jogos instalados no largo.
Os Jogos do Hélder são outra das novidades desta edição e pode-se dizer que têm sido um sucesso. São jogos tradicionais portugueses ou de outros países, que Hélder adaptou e construiu ele mesmo, em madeira, com cordas, bolas, roldanas, é preciso acertar, puxar, empurrar, ativar sistemas: "Apercebi-me que os miúdos não sabem como as coisas funcionam, estão habituados a carregar num botão para que tudo aconteça", explica Hélder. "Decidi pegar em jogos de computador e pô-los na rua." Ele gosta de ir falando com toda a gente e vendo as reações das pessoas: "Às vezes, as pessoas chegam aqui e não sabem como o jogo funciona, então põem-se a experimentar e até podem descobrir novas maneiras de jogar. Isso é fascinante, têm liberdade total, a imaginação é o limite."
Aproxima-se a hora do jantar. Já cheira a churrasco, o largo está cheio. Luís Ferreira, o diretor do festival, empurra um balde do lixo que está a prejudicar a passagem. Mas está contente. Ainda não é possível saber os números do público desta edição, mas Luís gostaria que fossem 35 mil pessoas nos quatro dias (o Bons Sons começou na sexta e só termina amanhã). Graciete e Céu gostam desta agitação mas deixam o convite: "Tem de vir ver a aldeia quando não há festival, é uma aldeia tão pacata. Mas ia gostar."