Mickael Carreira. "Em Portugal não se consegue viver de gravar discos"
Num dia de verão antecipado, a viagem de hora e meia de e para Lisboa valeu bem a pena. Dificilmente haveria melhor sítio onde pudéssemos encontrar-nos para almoçar do que a praia do Carvalhal, a espreitar a Comporta. Mas O Dinis revelou-se uma belíssima surpresa, ainda assim, do peixe acabado de chegar daquele mar logo adiante à verdadeira amizade - estendida a mim - com que o Senhor Dinis ali recebe o "seu" Mickael. E como estamos entre amigos, "os meninos aqui hoje não escolhem nada, que o Dinis vai tratar de vocês", esclarece o próprio assim que acaba de nos levar à mesa habitual do cantor, toldo aberto para assegurar que não há escaldões a estragar o resto do dia, e conta descartada no final com um "era o que faltava" à prova de todos os meus protestos.
Mickael costuma passar férias ali perto com Laura Afonso, com quem vive há cinco anos, foi ali que a filha Beatriz, de 3 meses, teve o primeiro dia de praia e o pai, Tony Carreira, também é cliente habitual. O sossego que ali o atrai é a cura perfeita para a agitação do México, onde o novo álbum o levará de novo em outubro, da musical Colômbia, onde o coproduziu, e da vibrante Miami, onde aprendeu a falar espanhol e encontrou inspiração e parceiros para a música que faz. Mas esta passagem pela Comporta foi visita de médico, numa altura em que o cantor está em plena promoção do seu sétimo álbum, Instinto (novembro de 2016), a agenda de concertos começa a apertar e falta menos de um mês para arrancar a próxima edição do The Voice. "Só em agosto tenho alguns 25 espetáculos pelo país inteiro, mas a tournée já começou... e já em julho tenho também as audições para a minha quarta temporada do The Voice." Com concorrentes a quem serviu de mentor a vencer duas das três edições em que participou (ao lado de Mariza Liz, Anselmo Ralph e Áurea), brinca: "Já sou o Ronaldo do The Voice." A fase de provas cegas que se aproxima não é fácil - "é uma semana a gravar todos os dias das 11.00 à meia-noite" -, mas dá-lhe gozo fazer o programa da RTP, sobretudo pela oportunidade de "aprender e trabalhar com malta nova; numa altura em que o panorama musical português não é fácil, o The Voice acaba por ser uma janela para eles". E é também, assume, uma forma diferente de chegar ao público, "de as pessoas conhecerem outra faceta minha, mais brincalhão, mais descontraído, e acredito até que me tenha trazido outro público que antes não ouvia a minha música".
Em 11 anos de percurso, com sete discos de originais e mais um par deles ao vivo e agora editado pela Universal Music, diz que continua fiel aos ritmos latinos que o caracterizam desde a sua estreia como cantor, mas reconhece que foi colhendo influências e evoluindo. "Quando comecei a trabalhar no primeiro disco fui um bocadinho atirado aos tubarões, tinha 20 anos, não tinha a experiência que hoje tenho, mas ao longo dos anos fui descobrindo a minha identidade musical. O boom da música latina foi há três anos e o Bailando (de Enrique Inglesias, com quem gravou uma versão) ajudou muito, porque foi o primeiro tema latino a passar nas rádios. Agora temos a Shakira com o Chantaje, o Despacito do Luis Fonsi... Mas gosto sempre de ir surpreendendo o público."
As gambas e as amêijoas à Bulhão Pato interrompem-nos, com o Senhor Dinis a apresentar um branco bem fresco, "aqui mesmo do Brejinho", que liga na perfeição com o dia e a comida. Mickael Carreira vai contando que desde miúdo sempre ouviu todo o género de música - desde a francesa, naturalmente, já que nasceu e cresceu em Paris, até à portuguesa, pop, RnB, "nunca me fechei num só estilo. Mas sempre gostei mais dos ritmos latinos, já ouvia muito Fonsi, Alejandro Sanz, Alejandro Fernández, Enrique Iglesias, Ricky Martin, Camila". Pergunto se foi sua a iniciativa de gravar duetos com alguns desses artistas internacionais. Diz que a coisa aconteceu naturalmente, depois de se cruzarem em estúdio ou por trabalharem com os mesmos produtores, que ajudaram a fazer a ligação. "O mercado português é tão pequeno que se eu lhes ligasse a dizer que queria gravar com eles, perguntavam "quem é este?"" Agora com a Universal, esse tipo de parcerias sai facilitado, mas não foi por essa via que chegou ao cantor colombiano do momento, com quem gravou o mais recente single do novo disco, Ya Ya Ya. "Conheci o Sebastián (Yatra) em Miami éramos os dois uns putos e tínhamos aulas de canto com o mesmo professor. Fomos mantendo contacto e quando estava a gravar este disco, já ele estava a ganhar muito peso no mercado colombiano, contactei-o. Hoje ele é sem dúvida um dos artistas com mais peso nesse mercado."
Apesar de ter tido aulas de música em diferentes momentos da sua vida - mesmo ainda em França, esteve um ano no Conservatório -, Mickael valoriza muito mais a paixão que põe no que faz do que a parte técnica. "Não me considero um músico de estudo, sou muito autodidata em tudo quanto faço. Por exemplo, eu toco bem guitarra mas não me vejo como guitarrista, sou bom nas minhas canções, mas acho que não conseguia acompanhar outro artista." No entanto, não sente que isso o fragilize: "O importante é saberes o que queres fazer da tua vida, da tua música." E rodear-se dos melhores, que é algo que não dispensa - a começar na Universal, mas passando pelo "imenso trabalho que há por trás de quem dá a cara" por um projeto musical.
Exigente e 100% dedicado ao que escolheu como carreira, assume que faz questão de se rodear de pessoas e receber os seus inputs - neste disco trabalhou com a Infinity Music da Colômbia, com Nelson Klassim, na parte de composição com Diogo Piçarra, entre outros. "Mas estou sempre lá a controlar, porque sei exatamente aquilo que quero fazer." Mas também tem momentos de angústia: "Antes de um novo disco, pensas sempre: e se o público não gosta, e se está cansado de mim... mas acho que todos os artistas vivem isso, porque aqui não há fórmulas matemáticas e por vezes pensas que um refrão vai bater imenso e depois não acontece... Já tive desilusões, mas nessas alturas é preciso arregaçar as mangas e não desanimar." Foi o que fez, por exemplo, quando o Viver a Vida não arrancou ao primeiro single, nem ao segundo... "mas depois lançámos o Porque Ainda Te Amo, e é das músicas de maior sucesso até hoje".
Nesse caminho, reconhece que há muito trabalho mas também alguma sorte. "Quem trabalha comigo sabe que há muito empenho e preocupação da minha parte, mas tenho estado nos lugares certos à hora certa, conhecido pessoas certas. Às vezes há qualquer coisa que não sabes explicar, um clique. Acredito muito nisso."
A certeza de para onde quer levar a sua música e o empenho que põe na sua carreira, porém, pouco têm que ver com ambições financeiras. É a paixão pela música - "talvez tenha despertado mais cedo para isso por ter um pai cantor, mas sempre a tive" - que o move e dá-se por satisfeito por fazer aquilo que mais gosta "e ainda me pagarem por isso". Quanto a números, nada tem a dizer, não gosta de falar em receitas, vendas, proveitos, nunca pensa no público como um mercado e até o irrita um pouco que se diga que tem um rendimento milionário. Não mantém sequer a conta aos discos de ouro (seis) e platina (nove, o que equivale a 170 mil cópias vendidas) que tem. Acaba por assumir que não perde dinheiro e até consegue ter uma vida confortável, mas garante que "em Portugal não se consegue viver de gravar discos - o meu maior rendimento vem dos concertos". Quanto a ele, entre viagens, estúdio, equipa e outros custos, a maioria daquilo que ganha acaba por servir para pagar um nível de produção, quer nos discos quer nos concertos, que não dispensa. "A parte do dinheiro nunca foi a mais importante para mim. O que eu ganho de bilheteira num concerto acabo por reinvestir na produção. Se eu tivesse juízo..." brinca. Depois justifica: "Nos concertos que faço, há um cuidado muito grande da minha parte em montar um bom espetáculo, para que quem gosta de um disco e sai para me ver ao vivo chegar a casa e pensar "valeu a pena"."
Essa maneira de estar na música, bem como o tratamento de "enorme respeito" para com os fãs, talvez a tenha aprendido com o pai, ao lado de quem subiu pela primeira vez a um palco. "Tinha 15 anos, foi no Olympia e fiquei tão assustado que nem me lembro bem... mas fui eu que pedi ao meu pai, que disse que gostava de cantar com ele. Já gravei com muitos artistas, mas o dueto mais especial que fiz, e que há de ser sempre o mais especial, foi o que gravei com o meu pai há muitos anos. E ele é o maior exemplo que posso ter, a forma como levou a sua carreira, as adversidades que teve de enfrentar, a verdade com que fez as coisas. Não é nenhuma rádio ou editora que manda na minha música, eu faço o que quero e gosto, e nessa postura, sem dúvida ele é o maior exemplo que eu posso ter."
E por isso mesmo, além de cuidar do clube liderado por uma das mais antigas das suas fãs e não desprezar os grupos espontâneos de apoio que se formam pelas redes sociais, faz questão de manter sessões de autógrafos a seguir a cada concerto. "Muitas vezes duram mais do que os próprios espetáculos - no Meo Arena foram cinco horas! -, mas o público trata-me tão bem que lhes devo isto. Para muitos, esse é o momento mais importante, estar ali a seguir ao concerto." De resto, não se deixa condicionar: "Se me apetece ir jantar com amigos, vou. Faço a minha vida normal. Não estou a fazer nada de mal... Se vives muito preocupado por estar toda a gente a olhar, não vives a vida."
Já com o peixe fresquíssimo a ultrapassar as expectativas, elogios feitos à mãe, que gere a produtora e em quem tem "absoluta confiança", quero saber se é em Portugal que está o seu público ou se tem planos para se expandir lá fora, no México por exemplo, onde uma das suas músicas (Yo Puedo Esperar) já serviu de tema a uma novela. Reconhece que a América Latina é uma das suas prioridades e o México, com 127 milhões de habitantes e por onde passou o embrião do sucesso de Enrique Iglesias ou Ricky Martin é uma oportunidade que não quer desperdiçar. "Não tenho conseguido cumpri-lo mas é algo em que quero investir, ir para lá viver três ou quatro meses, estar presente uma temporada para as pessoas não se esquecerem da minha cara." Mas viver mesmo só aqui em Portugal. "Sinto-me totalmente português", assume, apesar de ter vivido em França até aos 15 anos. "E quanto mais viajo, mais português me sinto, mais amo o meu país. Naquela altura tive oportunidade de ter dupla nacionalidade e escolhi ser só português."
Deixar Paris em plena adolescência não foi fácil. Entrou para o Liceu Francês, onde ficou três anos "até ser convidado a sair, porque não me portava muito bem... mas até isso, passar para o ensino português, foi importante para mim. Tenho as minhas raízes todas aqui e mesmo se de hoje para amanhã tiver de passar tempo na América Latina ou noutra parte, vou sempre viver aqui. É brutal estares em Lisboa e pensares, vou comer um peixinho ao Dinis e em hora e meia chegas; e este nosso povo, que sabe receber, não é conflituoso. Eu adoro Portugal." De facto, foi Mickael o principal impulsionador da mudança da família para cá. "Eu vinha aqui de férias, era só festa, praia, cantar umas coisas... claro que não era a mesma coisa, mas não me arrependo nada. E foi importante para nós, enquanto família, virmos, porque o meu pai já passava cá muito tempo e isso aproximou-nos."
Ninguém quer sobremesa, mas o Senhor Dinis entra de novo em cena com os cafés e uma "baba de camelo caseira que temos absolutamente de experimentar". E como é feio contrariar o anfitrião, descobrimos que está tão boa quanto ele a vendeu. A tarde já se faz longa e os segundos cafés chegam com nova recusa de trazer a conta, que fica pela certeza de que ganhou mais uma cliente.
Hoje com 31 anos, Mickael Carreira está certo de ter tomado as decisões certas. Pergunto-lhe o que seria a sua vida se não fosse músico. "Estava lixado." Ri-se. "Acho que se as coisas não tivessem corrido bem como músico hoje seria manager, porque gosto muito de tudo o que implica estruturar uma carreira, perceber como se chega a determinado patamar." E daqui a dez, onde se vê? "A viver da música, isso é o mais importante. Quero afirmar-me cada vez mais em Portugal e levar a minha música mais longe, mas não gosto muito de fazer planos. Tenho objetivos, sei onde quero chegar, mas quando penso demasiado nos passinhos todos as coisas não acontecem e acabo por desiludir-me. Por isso, quero trabalhar para as coisas acontecerem, mas não pensar que daqui a dois anos quero estar a tocar no American Airlines, em Miami, porque isso não vai acontecer."
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