Memória póstuma da Europa por J. Rentes de Carvalho

Chama-se a Ira de Deus sobre a Europa o novo livro de J. Rentes de Carvalho. Uma reflexão crítica.
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J. Rentes de Carvalho vaticina logo a princípio o seguinte no seu mais recente livro, o ensaio A Ira de Deus sobre a Europa: "Custa-me dizê-lo, mais ainda aceitá-lo, mas, tal como é e atualmente se comporta, a Europa tem toda a aparência de presa fácil para um islão que, convicto da sua supremacia e decidido a vencer, não olha a meios nem sacrifícios para impor a sua ideologia."

Esta sentença pode parecer desgarrada, mas, como se trata de um livro sobre a imigração, depressa o leitor perceberá o porquê de se introduzir o islão na narrativa. Quanto ao objetivo destas 240 páginas, o propósito é o da memória que interliga o autor emigrante de há 50 anos e os seus atuais companheiros de viagem. Ou seja, Rentes de Carvalho foi para Amesterdão a partir de Paris, aonde chegou a 24 de março de 1956 - há cinquenta anos. Ainda se lembra dessa tarde ser de um sábado, do comboio com locomotiva a vapor, de fumar alternadamente cachimbo e Gauloises e de se apresentar como um existencialista blasé.

Dessa vez não era imigrante, ia em trabalho e jamais se imaginaria a viver fora da capital francesa, sendo a Holanda algo desnecessário para a vida. Entre a estação de chegada e Amesterdão, foi vendo a paisagem, enfastiado, e a tomar notas. Papeis que décadas mais tarde lhe irão servir para recordar o percurso ensaístico deste livro que agora chega às livrarias: "Recordo a passagem de uma ponte sobre um rio largo..."

A Ira de Deus não se preocupa apenas com estes apontamentos antigos, vive deles para situar o autor no passado, mas frequentemente em paralelo com o presente, que é o motivo final desta narrativa. Tal como recorda sobre o que deixou de ser: "deixei-me levar numa existência que passou a desenrolar-se desde então em dois planos distintos, como a de duas pessoas habitando o mesmo corpo. Hoje em dia sinto-me menos inclinado a considerar como tipicamente holandesas certas particularidades de caráter. Certas maneiras de ser, e mesmo os aspetos físicos que julguei específicos do holandês, tendem a generalizar-se." Daí que, afirma, tenha nascido um homem que perdeu o medo e abrandou a crítica ao povo a que escolheu pertencer e o escritor português que nasceu na Holanda, no começo da década de 60.

Um autor nem sempre bem visto como se pode ler na introdução, quando recorda como o antepassado deste manuscrito foi pouco apreciado pelos editores holandeses, pois tratava das questões de como o país que o acolhera reagia perante as mudanças europeias, designadamente no caso da imigração, com partidos claramente a favor e contra e outras atitudes que não esperava ver.

Nesse volume, analisava as questões dos imigrantes com o foco holandês, mas quando se pôs a burilar este A Ira de Deus verificou que o problema era demasiado comum às sociedades do velho continente. Leu muito para se preparar e, de tanta consulta feita, perdeu a crença no futuro da União Europeia, onde vê mais sombras do que raios de luz: "ambição irrealista de querer fazer um melting pot de nações, povos e culturas em que a desconfiança, inimizade, ódio e desdém levam a melhor sobre as aparências de solidariedade". A tudo isto, acrescenta o Brexit, as vagas de refugiados constantes, o fim das ditaduras a Oriente, em confronto com o comportamento "bonzinho" dos europeus.

Entre uma vasta coleção de memórias do seu próprio caso de integração e um olhar crítico sobre a atualidade, , J. Rentes de Carvalho não consegue deixar de implodir uma bomba opinativa ainda mal vai na página 13: "Pela sua atitude e ideologia os refugiados do Médio Oriente formam certamente uma ameaça."

Um livro que é uma peregrinação sem uma imagem para adorar.

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