Livraria Culsete despede-se com liquidação total

Não é a falta de vendas que fecha a porta da emblemática livraria, antes a falta de forças da sua proprietária, Fátima Medeiros

Quando a Culsete abriu em portas em 1973 Manuel e Fátima Ribeiro de Medeiros tinham sonhos largos para Setúbal. Muito para lá da venda de livros. Haviam de deitar mãos à obra para que aquele espaço em plena Avenida 22 de Dezembro encorpasse cultura em cima de cultura. À boleia da comercialização de livros, claro, mas também de música, teatro, tertúlias, debates. Conseguiram. Ao longo dos anos a livraria ganhou escala, conquistou dimensão nacional, foi ponto de passagem de vários autores portugueses. Tornou-se impossível falar da cultura sadina sem a estampar na primeira página do debate. Até que há dias uma má notícia apanhou a cidade de surpresa. A histórica Culsete vai fechar em outubro.

Ponto de ordem reclamado por Fátima Medeiros na conversa com o DN: "Não é um fecho igual ao de outras livrarias, por falta de vendas ou problemas económicos. Nada disso. É um cessar de atividade por motivos relacionados com a minha saúde", esclarece sorridente, de bengala na mão que a ajuda a apoiar ou a ligar e desligar interruptores, depois de nos últimos tempos ainda ter procurado evitar o encerramento da casa. Mas sem sucesso.

"Apesar das inúmeras diligências por mim efetuadas, não foi possível encontrar, até ao momento, ninguém que queira prosseguir com este projeto. Mantenho, porém, essa hipótese em aberto até ao último dia", avisa, para logo garantir que assim que as forças o permitam poderá voltar à cultura que lhe corre nas veias. "Não deixem de me desafiar para as atividades da cidade. Vou estar disponível assim que recuperar", avisa a viúva de Manuel Medeiros, o autointitulado Livreiro Velho, o mais antigo de Setúbal, que morreu há três anos, depois de ter chegado à cidade em 1973, abrindo a livraria a 1 de outubro desse ano.

Era açoriano mas aos 32 anos optou pelo continente. Começou por escolher Lisboa onde fundou a sua primeira livraria, em parceria com outros sócios. Nosso Tempo, assim se chamava, abria portas em 1969, no mesmo ano em que Manuel Medeiros desistia da carreira de jornalista por não suportar o lápis azul da censura. Já antes tinha sido ordenado padre, em 1959, vindo a trabalhar como professor de Religião e Moral no Liceu Antero de Quental, em Ponta Delgada, até 1967. Abdicou do sacerdócio um ano depois.

A morte do marido deixou Fátima Medeiros, livreira e professora, sozinha ao "leme do barco", mas não saiu da rota. Manteve o objetivo social de uma casa que juntou alguns dos maiores vultos da literatura nacional (José Saramago, Natália Correia, Nuno Júdice, entre outros) e onde só se pode entrar com vagar. "Uma livraria não deve ser visitada à pressa. É preciso sentir o cheiro dos livros e isso só se consegue com tempo", explica, admitindo que foi nesta linha que fez "gala" em manter o fundo editorial.

Aqui entra outra vez a máxima que acompanhou a livraria por 43 anos: "A Culsete não foi criada só para vender livros. É muito mais do que isso", insiste a livreira, enquanto vai folheando o rol imenso de atividades culturais que organizou.

Basta recuar a julho para recuperar a última Arruada de Livros que juntou cerca de 40 autores e artistas convidados durante dez tardes e noites, trazendo leitura, música, teatro, escritores, arquitetos, ateliês de pintura e culinária para o passeio defronte da livraria.

"Era tão interessante que alguém quisesse manter isto. A cidade vai sentir tanta falta", admite Fátima Medeiros, numa altura em que algumas prateleiras já dão sinais de estar algo despidas. Mas a proprietária evita o tema, preferindo voltar a surpreender a cultura sadina com uma liquidação total - até 2 de outubro vai haver livros à venda desde 50 cêntimos a 10 euros, para exemplares cujo preço de capa seja superior a 40 euros. "Vai valer a pena aproveitar as nossas preciosidades a preços tão convidativos", afirma.

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