Lisboa tão triste e tão alegre que o Estado Novo escondia
André Príncipe tinha "uns 21 ou 22 anos" e trabalhava num documentário sobre o arquiteto Victor Palla, realizado pela filha deste, Maria José. Foi há mais de quinze anos. Durante a rodagem, Palla perguntou-lhe: "O que é que você faz? Eu disse: Sou aluno de Cinema e Fotografia. E ele: Ah, que curioso, eu também faço fotografia. Sabe que quando tinha a sua idade fiz um livro de fotografia? Ainda o devo ter."
"E fez-me assim como se fosse uma coisa qualquer. Foi buscar. E pegou numa cópia do Lisboa, Cidade Triste e Alegre." Como se não fosse nada. Como se aquele livro de 1959, assinado por dois arquitetos, Palla (1922-2006) e Costa Martins (1922-1996), fotógrafos amadores, não fosse tido quase unanimemente como o maior fotolivro português. Aquele livro que André Príncipe e José Pedro Cortes, ambos fotógrafos, reeditaram pela segunda vez em outubro último, depois da edição já esgotada de 2009. Ambas edições da Pierre von Kleist, de que são fundadores e editores.
Lisboa, Cidade Triste e Alegre é uma espécie de sequência fílmica neorrealista ou uma "sinfonia" em fotografias tiradas por bairros como Alfama ou o Bairro Alto. No Índice, final do livro, quando Palla e Costa Martins escrevem sobre o que ali fizeram e explicam, uma a uma, como captaram todas as fotografias, lê-se: "Um romance passado em Dublin num só dia pode explicar melhor o homem do que uma História Universal." Pensa-se logo no Ulisses de James Joyce. E Lisboa faz-se então mundo nesse livro em que as imagens são acompanhadas pelos versos de poetas como David Mourão-Ferreira, Fernando Pessoa ou Jorge de Sena e introduzidas por José Rodrigues Miguéis.
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Estão lá os miúdos, os gatos, os namorados, os velhos ("Velhos, ó meus queridos velhos, O"Neill), os cestos sobre as cabeças, "as prostitutas, proxenetas" (David Mourão Ferreira), o rio Tejo, o dia e a noite.
De esquecido a objeto de culto
Cidade Triste e Alegre vem de "Lisbon Revisited", de Álvaro de Campos. E, de facto, Lisboa foi revisitada a cada vez ao longo da história do livro que, em 1959, foi publicado em fascículos. Não só porque era habitual na época, mas porque se vivia o Estado Novo e Salazar preferia o florescer das avenidas novas à pobreza de Alfama.
"Se fosses fazer um álbum como aquele, 200 páginas, com aquele impacto, se fosses fotografar os bairros populares e passasses pela censura, se calhar tinhas problemas. Eles escreveram que era este o projeto deles: mostrar a Lisboa que não se mostra. Hoje, é o contrário, aquela é a Lisboa do postal. O gesto deles é o equivalente a dizer "vou fazer um livro chamado Lisboa e fotografar na Amadora, Chelas, Almada"" lança André.
[citacao:Foi vendido por 13 mil euros num leilão da Christie"s em 2007]
O livro esteve praticamente esquecido até 1982, ano em que António Sena o recuperou para a exposição Lisboa e Tejo e Tudo, na galeria Esther. Transformado num objeto de culto, em 2004, Martin Parr e Gerry Badger elegeram-no entre os melhores livros do pós-II Guerra Mundial no primeiro volume de The Photobook: A History. Em 2007, foi arrematado num leilão da Christie"s por cerca de 9600 libras (cerca de 13 mil euros).
A mais recente edição do Lisboa é de mil exemplares. O ideal, diz Pedro Cortes, "seria um clássico português como este estar sempre disponível". Não mudaram um centímetro neste livro "pioneiro" todo ele feito para "transmitir uma ideia", continua Cortes. Uma ideia como Lisboa. Ou como a vida toda que nela corre.
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Como num filme ou numa sinfonia, Palla e Costa Martins - não se sabe o que é de quem - sabiam o que queriam. "Numa espécie de maqueta eles tinham uma imagem colada e depois tinham escrito: "Precisamos de uma imagem de mulheres a olharem para o lado esquerdo." André recorda uma outra maquete "inteira do livro toda feita em desenho a lápis, como se fosse um storyboard do cinema." Lisboa é essa maqueta em movimento.