Licínio Azevedo: "Eu não faço filmes políticos. Não tenho culpa se tudo é político"

O realizador esteve em Lisboa para falar de <em>Comboio de Sal e Açúcar</em>: o primeiro filme moçambicano a candidatar-se aos Óscares
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Combinámos encontrar-nos em frente ao cemitério de Belas. A partir dali, Licínio Azevedo daria as instruções necessárias para chegarmos à casa onde ele estava. Ao telefone: "Meu túmulo é o 27", gracejou. Epitáfio? "Aqui seremos felizes para sempre." O brasileiro que é considerado por muitos o "pai do cinema moçambicano" veio a Lisboa falar do seu novo filme, Comboio de Sal e Açúcar, em exibição no cinema NOS Amoreiras. É o primeiro filme moçambicano a concorrer a uma nomeação aos Óscares e, no ano passado, foi visto por 4500 pessoas no Festival de Locarno. Chama-lhe um western africano: passa-se em plena guerra civil moçambicana, num comboio que ligava Nampula à fronteira com o Malawi, e onde muitos arriscavam a vida para trocar sal por açúcar, uma raridade em tempos de guerra. No comboio escoltado por militares, o perigo vem de dentro como de fora. E além disso: a velha história de amor.

Comboio de Sal e Açúcar esteve para ser um documentário?

Nos anos 1980, durante a guerra civil, eu ouvi falar desse comboio, que ia do litoral até à fronteira com o Malawi: 700, 800 km. Hoje é uma viagem que se faz num dia, em 10 horas. Na época podia levar até três meses. O comboio era atacado, a linha estava sabotada, destruída, as pessoas mortas, raptadas, o comboio destruído. Eu adoro fazer documentários, e durante a guerra disse: "Vou fazer sobre isso." Não consegui financiamento. Todos os financiadores possíveis diziam: "Há muito risco, vamos perder o equipamento." A guerra acabou em 92 - depois recomeçou, mas esse é outro assunto - e disse: "Vou viajar nesse comboio para conhecer as histórias das pessoas que viajavam durante a guerra." Fiz várias viagens, só conversando: com os trabalhadores dos caminhos-de-ferro, com os passageiros que faziam essa viagem antes. Não ia fazer ficção, não tinha dinheiro para isso. Então escrevi um romance, Comboio de Sal e Açúcar. Vinte anos depois adaptei o livro para o cinema.

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O filme é feito em 2016, quando em Moçambique decorre um conflito com a Renamo. Porque é que escolhe essa altura?

Isso criou algumas dificuldades para a produção

Não foi isso que o fez querer filmar?

Não. Só trouxe dificuldades para produção. Em Moçambique não temos fundos para o cinema, depende de fora. [Este filme é uma coprodução entre Portugal, França, África do Sul, e Moçambique] E lá não fazes filme sem ter apoio do governo, um filme com essa importância, que fala de coisas politicas. Eu não faço filmes políticos, não tenho culpa se tudo é político. OK? Então ficaram um pouco preocupados. Porque precisava do caminho-de-ferro, do ministério da Defesa. Na África do Sul, depois do Apartheid, teve aquela comissão de reconciliação: era preciso dizer as coisas que aconteceram. Eu acho que para haver uma verdadeira reconciliação, depois de uma guerra civil, é preciso que se diga o que aconteceu. E, no caso de Moçambique, como se vê no filme, as atrocidades aconteciam dos dois lados. Um homem dez anos no mato, longe da família, tudo a lutar, acaba fazendo coisas terríveis. E a pior de todas as guerras é a guerra civil, são irmãos contra irmãos. Destrói a alma do país, o coração do país. Houve uma certa resistência: "Ah, reconciliação agora." Eu disse: "Não, para haver reconciliação é preciso mostrar as coisas."

Como é que o filme foi recebido em Moçambique?

Foi o maior sucesso nas salas. Temos poucas. Antigamente havia 100 salas, antes da independência.

Que agora estão fechadas?

Atualmente são igrejas: Igreja Universal do Reino do Diabo e outras assim. Temos duas salas em Maputo, agora vão abrir outras, tem cinco ou seis no país inteiro. Mas o filme conseguiu ficar quatro semanas em cartaz, as salas cheias. Conseguiu superar as grandes produções norte-americanas. Porque o nosso público continua sedento por ver as suas próprias histórias. Teve coisas incríveis na filmagem. Foi uma produção enorme, muito difícil, porque era um comboio. Muita figuração era conseguida nos locais. Em várias estações onde filmávamos a produção organizava 200, 300 figurantes. Houve situações em que os figurantes começavam a chorar porque viam uma cena e diziam: "Isso aconteceu mesmo. O meu marido foi morto assim, o meu primo foi amarrado num comboio..." Coisas que eles viveram, que viram.

Que comboio é este?

É um pouco um símbolo do país, e da vida. Amor e morte, sal e açúcar. Ali tem todas as religiões, o muçulmano, o animista, o cristão. Moçambique é um país onde as coisas ainda convivem bem, ao contrário do resto do mundo, que está uma confusão. Espero que não mude.

Chama western africano a este filme e há nele algo do Stagecoach, de John Ford: tudo se joga num comboio onde estão várias personagens da vida. Foi propositado fazer um western?

Não é propositado. O meu género preferido são os western, vejo sempre. O meu favorito é Shane, de George Stevens. Aquele herói solitário. Adoro western, mas não os modernos, só os do Clint Eastwood, que é o único direitista republicano que eu gosto. É de direita, vota no partido republicano, mas nos filmes ele defende as prostitutas, os imigrantes, todos, é contraditório. Eu sou cineasta moçambicano, mas também sou gaúcho, nasci no Rio Grande do Sul, então o western já existia lá entre nós. Meu pai andava na fazenda a cavalo, com o revólver na cintura. Nunca se andava sem revólver na época. Antes de eu aprender a caminhar, aprendi a andar a cavalo. Tinha um pónei pequeno, branco, e quando eu chateava em casa a minha mãe punha-me em cima do cavalo, amarrado.

Não vem de uma família de militares?

Tem dois lados. O lado de fazendeiros, que é do pai, e o outro lado, da minha mãe, que são militares, desde a guerra do Paraguai. Por isso é que a minha mãe obrigatoriamente queria que eu fosse militar. E me meteu com nove anos no colégio militar em Porto Alegre. Fiz três anos e depois eles não me aguentaram ou eu não aguentei.

Mas há qualquer coisa de militar na realização um filme, não é?

Me ajuda muito essa formação. O horário, a disciplina. E sem disciplina tu não fazes cinema. Nesse filme, no comboio, os militares que aparecem no filme são militares verdadeiros, e depois há os figurantes todos. É preciso uma disciplina rígida.

Filmaram mesmo na linha retratada?

Não. Lá hoje as linhas são modernas. A história verdadeira é no norte. Encontrei linhas desativadas no sul do país. Os comboios são antigos, tinham aqueles wagons dos militares blindados: árvores tinham crescido dentro já, e uma das duas locomotivas nem tinha motor. Ali a gente podia destruir e remontar, era quase como um estúdio. Tinha 30, 40 quilómetros de linha, a gente podia fazer o que quisesse. Mas mesmo assim não foi fácil. Gerir trabalhadores de comboios de ferro, os militares verdadeiros [que entram no filme]... O ator que faz de maquinista aprendeu a conduzir, os nossos atores Matamba Joaquim e Thiago Justino foram fazer treino militar. Duas semanas a sofrer como cães no quartel. Para aprender a pegar armas. Apaixonaram-se tanto que adoravam dar tiros. "Não é rajada, é tiro a tiro, na guerra é assim. Rajada só em filme americano [dizia]" Na cena final do duelo só tinha uma bala para cada um, não podia repetir o take.

O Licínio vai para Moçambique depois da independência a convite do Ruy Guerra.

Ele foi convidado para apoiar a criação do Instituto Nacional do Cinema. É preciso dizer que num certo sentido o nosso primeiro presidente Samora Machel era um visionário: ele sabia que o cinema podia dar uma grade contribuição para a consolidação da nova nação, da identidade nacional.

Conheceu-o?

Claro. Ia a muitos comícios dele, de sete, oito horas. Era proibido sair.

Mas a ideia que o governo tinha para o cinema não era a vossa, ou era?

Na época quem tinha ideias era o partido FRELIMO, era o período revolucionário, nós seguíamos. O cinema era um instrumento, uma arma.

Não era cinema livre?

Não, absolutamente. Tinha um papel importante para levar as informações para as pessoas, não havia televisão. Havia um jornal na sala de cinema, antes do filme. Foram produzidos 300 e tal. Eu só escrevia. Eu fui para lá para escrever, porque na Guiné-Bissau fui dar aulas de jornalismo e fiz entrevistas com antigos combatentes. Fiz um livro de histórias de guerra escritas como contos. Por causa disso fui convidado pelo Ruy Guerra para ir para Moçambique fazer um trabalho igual: recolher histórias da guerra para serem usadas em cinema.

Já com o Luís Carlos Patraquim?

Tenho histórias incríveis com ele. A primeira longa-metragem de ficção baseada nesse meu livro era uma coprodução com a ex-Jugoslávia. O Patraquim e eu escrevemos uma história bonita, romântica, e enviaram-nos para a Jugoslávia para trabalhar com o realizador e o guionista. Colocaram-nos num hotel muito bonito em Belgrado, davam-nos bebida o tempo todo, não se fazia nada. Aí disseram: "Não se preocupem, o guião já esta pronto. Foi um grande escritor de Montenegro que escreveu." Fomos ler o guião. Não tinha nada que ver com a história real. Começava assim: uma guerrilheira corria, perseguida por dois comandos portugueses, aí ela chega num lago - e nem há lago ou, se há, há crocodilos, ninguém entra - tira a roupa e nua, salta para a água. Aí um dos comandos portugueses aponta a espingarda a G3 e o outro diz: "Não! Não mate essa mulher, eu amo essa mulher." Na perseguição de algumas horas, apaixonou-se por ela. Mulher nua nessa época? O Samora Machel: "Não há mulher nua nos filmes, não existe." Então tiraram a mulher nua. Então o comandante, o herói moçambicano, está na prisão portuguesa. Os guerrilheiros da FRELIMO com os seus helicópteros atacam o quartel para libertar o comandante. "Por amor de Deus, a FRELIMO não usava helicópteros, não tinha! A guerra era feita a pé!" [disse]. E eles:" Assim não se pode fazer filme, não há helicóptero, não há mulher nua. Vamos encontrar solução." Aí vieram: "Vamos fazer como os ingleses que lutaram no deserto do Saara na II Guerra. A FRELIMO com jipes e metralhadoras." "A FRELIMO não tinha jipe! Aquilo é mato, o jipe não passa entre as árvores." Aí eu caí fora. O filme não tem nada a ver com o livro que eu escrevi.

Porque é que foi ficando em Moçambique?

Foi um projeto atrás do outro.

Como é que a certa altura aparece lá o Jean-Luc Godard?

Nessa época Moçambique era um polo de atração, porque era um exemplo revolucionário em África. Ele chegou com a primeira câmara de vídeo que vimos. Fez pouco lá, mas falava muito connosco, dava palestras, conversava.

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