Leonard Cohen, o "profeta da gentileza"
"Eu faço parte de uma multidão de órfãos", disse Tolentino Mendonça. Samuel Úria não quis falar, mas ainda escreveu: "O Cohen foi o primeiro gajo que me fez chorar em concertos". Rui Reininho passeava pela rua do Século e comentou ao telefone, entre a angústia e a graça: "É um bocado assustador, porque parece gente da família. Mas eu acho que o Leonard morreu antes que lhe dessem o prémio Nobel. Para evitar chatices." Márcia entoou Dance Me To the End of Love até se lembrar do nome da canção, e perguntou retoricamente: "Quando ele escreveu àquela Marianne, a gente sabia que estava no final da vida, não é?" Pedro Mexia recordou o autor das canções que cita como "uma espécie de provérbios pessoais".
Por esta hora já terá ficado claro que é da morte de Leonard Cohen que se trata. A golden voice do poeta, músico, e escritor canadiano calou-se na quinta-feira, dia em que, aos 82 anos, "morreu tranquilamente na sua casa em Los Angeles", segundo o seu filho Adam. A notícia chegou ontem, quando ainda nem um mês tinha passado desde que o ouvimos pela primeira vez entregar-se ao entoar I"m ready, my Lord em You Want it Darker, o seu 14.º álbum.
Também em julho, na carta que escreveu a Marianne Ihlen, "aquela Marianne"a que a música Márcia se referia, a de So Long, Marianne, a musa de Cohen com quem este viveu na década de 60 na ilha grega de Hidra e que morreria nesse mesmo mês, lia-se: "Bem, chegou este tempo em que estamos realmente tão velhos e os nossos corpos estão a decair, acho que te vou seguir muito em breve."
Leonard Norman Cohen, nascido a 21 de setembro de 1934 em Montreal, tinha 33 anos quando editou o seu primeiro álbum, Songs of Leonard Cohen, muito depois de ter começado a escrever. O padre e teólogo Tolentino Mendonça começou a ouvir a sua música na adolescência. "Com o Cohen sentimos aquilo que sentimos com os grandes criadores: que procuramos e somos procurados. Parece que o mundo ficava incompleto se não tivesse existido aquele encontro", conta.
Rui Reininho lembra-se que, nas suas "primeiras festinhas", se "dançava slow" ao som de So Long, Marianne. Pedro Mexia, crítico literário, poeta, e atual conselheiro cultural do Presidente da República, diz que a canção de que se lembra "sempre em primeiro lugar" é Famous Blue Raincoat, de Songs of Love and Hate (1971). Das canções daquele que foi educado no judaísmo, e a quem é impossível negar uma leitura profunda da Bíblia, daquele que depois se converteria ao budismo, Mexia nota que há nelas "uma espécie de indistinção entre o sagrado e o profano. Ele era um mestre absoluto. Nós nunca sabemos bem se uma canção é uma canção de amor, ou uma canção sexual, ou um hino religioso." Pense-se em Hallelujah que muitos terão recordarão na voz de Jeff Buckley.
Mexia lembra, por fim, um gentleman, que "sempre pareceu alguém de outro tempo, se calhar de vários tempos." Tolentino Mendonça haveria de recuperar essa característica ao enumerar o que nos mostrou Cohen, que esteve sempre "em diálogo com a carne e com Deus". "Eu diria três coisas: uma radical exposição do desejo, um sentido próximo do divino, e uma gentileza infinita. Em tudo: na sua palavra, no seu silêncio, na gestualidade do corpo, tudo nele é gentileza. E não há muita gente assim: ele era um profeta, um profeta da gentileza."
Quando Úria ontem escrevia no Facebook acerca de Cohen, referia-se a um concerto, talvez entre os seis que ele deu em Portugal - o primeiro em 1985, no Pavilhão Dramático de Cascais, e o último no Pavilhão Atlântico, em 2012, em Lisboa - e contava: "No encore chamou ao palco a equipa completa; (...) todos cantaram juntos uma canção baseada na passagem do livro de Rute [deveria ser Whither Thou Goest]que diz "Onde fores, eu irei. Onde pousares, eu pousarei. O teu povo será o meu povo"." E despede-se assim: "Agora take this longing."