Júlio Resende e Salvador Sobral à procura de Pessoa
Alexander Search é um dos heterónimos de Fernando Pessoa. E a partir de agora é também nome de grupo e de disco. Com o pianista e compositor Júlio Resende ao comando e a voz de Salvador Sobral, é um entroncamento sonoro da poesia do escritor em inglês
O poder criador que emana de um livro, por muito singelo que seja, já se sabe, atemoriza ditadores e inspira leitores. "Um livro pequenino e muito bom", No Matter What We Dream, seleção de poemas ingleses de Fernando Pessoa, fascinou o compositor e pianista Júlio Resende há mais de dois anos. "Senti-me muito inspirado pelos poemas e absolutamente deslumbrado com a capacidade que o Fernando Pessoa tem de escrever em inglês - foi a primeira língua em que escreveu poemas. Encontrei naqueles poemas uma carga adolescente, juvenil, de rebeldia, que me lançava para uma coisa que eu queria fazer há algum tempo, que é uma banda de rock", conta.
De então até ontem, dia em que foi posto à venda o álbum com o nome da formação e do heterónimo de Pessoa, Alexander Search, o músico de Faro percorreu um caminho que, a certa altura, envolvia David Fonseca. A colaboração com o cantor de Someone That Cannot Love acabou por não avançar e entrou em cena um cantor que, certo dia, saltou para o palco do Hot Clube durante uma jam session. "O Júlio estava a tocar e eu subi para cantar uma canção", recorda Salvador Sobral. "Perguntei-lhe se ele sabia o Darn That Dream, ao que me respondeu "Eu sei todas". Achei aquilo um bocado estranho, mas depois mostrou o telemóvel, que é onde tem as partituras. Ainda hoje usa essa piada, é como os velhotes, conta sempre a mesma", graceja. Foi o início de uma relação de amizade, que teve como primeiro capítulo a participação e coprodução de Resende no disco de Sobral, Excuse Me.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Quando Júlio Resende começou a dar forma à ideia de musicar os poemas ingleses de Fernando Pessoa, compôs "intensivamente dentro dessa lógica musical que tem que ver com o pop rock e eletrónica, canções com pouco tempo, com garra e desapego, em certa medida". Mas o trabalho do compositor, se começou a solo, passou a beneficiar da dinâmica de um grupo, com a entrada do guitarrista Daniel Neto, do baterista Joel Silva e a eletrónica de André Nascimento, além da voz de Salvador Sobral. "Houve coisas que foram mudando à medida que a banda foi tocando e trabalhando. Todos os elementos contribuíram para a estética. As músicas tinham um esqueleto, a minha composição, e depois passaram a ter corpo. Houve uma grande evolução, mas não houve nada que divergisse totalmente daquilo para o qual queria dirigir", diz Júlio Resende.
Júlio Resende, que tem quatro discos em nome próprio no currículo, distingue entre a gravação e as atuações ao vivo. "Os concertos são sempre uma coisa em aberto." E se se diz satisfeito com o álbum, afirma que em concerto Alexander Search ainda é melhor. Está, aliás, "bastante entusiasmado" com o concerto de estreia, no Palco EDP do Festival Super Bock Super Rock (dia 13). À pergunta se este cruzamento de jazz com pop rock e eletrónica não assentará melhor noutros auditórios, Resende nega: "Faz todo o sentido irmos ao Super Bock Super Rock, porque é nesse contexto de muito som, muita pedalada que pensámos a banda." Sobre a hipótese de as multidões pedirem que toquem Amar pelos Dois, desdramatiza. "É uma coisa com a qual temos de saber lidar. Os Radiohead viveram com o estigma do Creep, que tiveram ene vezes de recusar cantar. Em relação a Alexander Search acho que não vamos padecer desse mal, as pessoas não vão misturar as coisas."
O pescador e o transexual
Tal como assinam no livreto, nos concertos os músicos vão vestir o fato das personagens. "O Augustus Search é um pescador de Provincetown, uma cidade norte-americana que recebeu muitos portugueses. Entretanto, conheceu em Lisboa o Alexander Search, que morreu, mas que nos deixou estas letras", conta Resende. Já a personagem de Salvador, Benjamin Cymbra, "nasceu na África do Sul e estava no corpo de uma menina, mas não se sentia uma menina. Sentiu que tinha de se libertar e seguir a sua verdadeira personalidade. Então foi para os Estados Unidos e lá conseguiu fazer a operação, que ainda estava em fases experimentais, porque estamos a falar do século XIX. Foi a primeira operação transexual", elucubra. O autor do projeto explica: "Toda a ficção à volta da biografia está em construção, como acontece com Pessoa e os seus heterónimos. É como se tivéssemos todos acabado de nascer e estivéssemos a constituir-nos. Mas já temos algum carisma."
A ideia de Júlio Resende é continuar a explorar o baú de Alexander Search. Mas se calha sentir o mesmo fascínio por O Operário em Construção, de Vinicius de Moraes, que anda a ler, quem sabe o que daí poderá vir. Para já, é tempo de fruir esta busca pela poesia de Fernando Pessoa.