Jane Birkin, a musa que se tornou herdeira
Nada há de mais preconceituoso do que sentenciar que uma mulher de êxito conta sempre com a ajuda de um Pigmalião: multiplicam-se os exemplos que vão em sentido contrário. De alguma forma, até Jane Mallory Birkin, nascida há 70 anos no elegante bairro londrino de Marylebone, pode defender-se dessa dependência com o argumento de que já tinha um currículo antes de os seus destinos se cruzarem com os de Serge Gainsbourg, com quem viveu, trabalhou e partilhou uma filha (a polivalente atriz e cantora Charlotte Gainsbourg).
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Basta pensar em dois filmes icónicos: História de Um Fotógrafo (Blow-Up), de Michelangelo Antonioni, ainda rodado em Londres, e A Piscina, de Jacques Deray, que aproveitou bem o cenário de Saint--Tropez, já depois de Birkin ter optado por atravessar o canal da Mancha em busca de novos horizontes, e que a pôs face a face com consagrados como Alain Delon, Romy Schneider e Maurice Ronet. Na vida real, Jane já era mãe, de Kate (que morreu em dezembro de 2013), nascida do casamento da atriz com John Barry, compositor inglês que se celebrizou, por exemplo, com a autoria do tema musical de James Bond ou com as bandas sonoras de África Minha e Danças com Lobos.
Ao contrário do que podem presumir os mais idealistas e românticos, a relação de Jane Birkin com Serge Gainsbourg não foi tiro e queda (ou, como diriam os franceses, um coup de foudre): quando se juntaram para as filmagens de Slogan, de Pierre Grimblat, Serge atravessava uma das (muitas) fases de impaciência, agravada pela sua rutura sentimental com a voluptuosa Brigitte Bardot. Curiosamente, apenas quatro anos depois, em 1973, BB e Birkin partilhariam - e de forma ativa - a mesma cama, num filme de Roger Vadim, Se D. Juan Fosse Mulher. Ironias do destino...
Voltando a Grimblat, coube-lhe o papel de casamenteiro: preocupado com o mau ambiente na rodagem, marcou um jantar com o parzinho e não apareceu, deixando Jane e Serge sozinhos. O resultado não poderia ter sido mais categórico: o casal acabaria por aparecer em conjunto em mais quatro filmes, alguns deles perfeitos para ilustrar um certo espírito de época, como Os Caminhos de Katmandu ou Cannabis. O epílogo deste "casamento" na Sétima Arte dar-se-ia em 1976, quando Gainsbourg, a dirigir a sua primeira longa-metragem, escolheu Birkin para o papel principal de Amor Marginal, cujo título principal já era bem conhecido dos consumidores de música e dos colecionadores de polémicas: Je T"aime... Moi non Plus...
Defensora do legado
Sete anos antes, pouco tempo depois do tal jantar de descoberta mútua, Serge Gainsbourg tinha apostado o seu peso específico como autor, cantor e agitador, ao eleger Birkin como parceira para o diálogo amoroso (ou sexual) de Je T"aime... Moi Non Plus, uma canção originalmente escrita para Brigitte Bardot e que, de tão "explícita", acabou por ser condenada por obscenidade pelo jornal oficial do Vaticano, L"Osservatore Romano.
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Como costuma acontecer nestas ocasiões, a popularidade da cantiga teve direito a um crescimento exponencial, ao passar ao papel de fruto proibido. Chegou para impor o fio de voz de Jane Birkin, um "miado" para uns, um "sussurro sensual" para outros, como marca distintiva para tudo o que se seguiu. Muitas outras se seguiriam - Orang Outan, Ne Dis Rien, Banana Boat, Kawasaki, Lolita Go Home -, algumas delas a tentar recuperar o "âmbito" sexual de Je T"aime - casos de 69 Anée Erotique, La Décadanse ou Mon Amour Baiser. Ora, neste domínio, parece inegável que foi a sombra protetora de Serge que permitiu a Jane uma estabilidade profissional, acompanhada de um progressivo reconhecimento.
Em 1971, Gainsbourg e Birkin foram pais de Charlotte, a quem, em 1982, Jane daria mais uma meia--irmã: Lou Doillon, filha da relação com o cineasta Jacques Doillon. Birkin nunca abandonou a sua faceta de atriz, filmando com François Leterrier (Projeção Privada), Michel Deville (O Cordeiro Enfurecido) e, mais tarde, Jacques Rivette (Amor de Rastos e A Bela Impertinente, que lançou de vez a figura de Emmanuelle Béart) e até Jean-Luc Godard (Atenção à Direita). O realizador Claude Zidi descobriu e aproveitou os dotes de comediante de Jane, lançando-a como a "sócia" de Pierre Richard, em filmes como A Mostarda Sobe-Me ao Nariz ou A Corrida dos Malucos.
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Fora das fronteiras francesas, a atriz agarrou ainda a oportunidade de brilhar em dois argumentos de Agatha Christie, Morte No Nilo e Morte ao Sol, ambos com Peter Ustinov a dar vida ao detetive belga das "celulazinhas cinzentas", Hercule Poirot. Hoje, o total é poderoso - nada menos de 77 longas-metragens, a mais recente das quais às mãos de Bertrant Tavernier. Já realizou, também, uma longa-metragem: Boxes, que juntou Geraldine Chaplin, Michel Piccoli e John Hurt no elenco, e chegou a ser nomeada em Cannes.
A lista podia ser muito mais extensa se, a partir de 1985, Jane Birkin não se tivesse dedicado também ao teatro, onde - entre outras - já mostrou os seus dotes em peças de Marivaux, Eurípedes e Shakepeare (em Inglaterra). Paralelamente, desde a morte de Serge Gainsbourg, em 1991 (foi há 25 anos mas não parece, tal a atualidade das suas criações), Jane chamou a si a responsabilidade de, não deixando apagar a memória do autor, evitar que a sua obra pudesse ser negligenciada ou adulterada. Lançou, em 1996, um disco de estúdio com clássicos de Gainsbourg revitalizados por novos - e diferentes - arranjadores. Depois, em 2002, protagonizou o espetáculo Arabesques, outra vez com canções de Serge, e passou-o a disco. O que não deixa de ser sintoma de coragem para uma mulher que só subiu ao palco depois dos 40 anos, no (agora tristemente célebre) Bataclan, em 1987. Já colaborou com grandes de França e internacionais como Brian Molko (dos Placebo), Beth Gibbons (dos Portishead), Rufus Wainwright ou Caetano Veloso.
Já recebeu um prémio como cantora nos Victoires de La Musique e foi nomeada como melhor atriz, nos prémios franceses de teatro (Molière) e nos de cinema (César). A marca Hermès lançou, em 1984, uma mala com o seu nome; com o tempo, foi-se tornando uma peça de coleção e, em 2015, um exemplar foi leiloado em Hong Kong, por mais de 200 mil euros. Por essa altura, já a artista tinha pedido à marca que renomeasse a criação, uma vez que utilizava peles de animais.
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Colaboradora da Amnistia Internacional, foi apoiante de Ségolène Royal nas eleições presidenciais que esta perdeu. Descendente do rei Carlos II, de Inglaterra e da Escócia, é prima do filósofo e escritor Bertrand Russell. Nada disso a impediu de adotar a nacionalidade francesa. Com tudo isto, a tal ideia redutora do "you, Serge; me, Jane" parece mesmo muito curta para uma musa que, afinal, soube transformar-se na guardiã de uma herança.