Jafar Panahi: um grande filme do grande ausente de Cannes
Ao longo de 71 edições do Festival de Cannes, quantas mulheres já disputaram a Palma de Ouro? A resposta é: 82. E quantos homens: 1.688. Neste tempo de muitas discussões sobre a igualdade de direitos (muito para além do cinema, como é óbvio), é caso para dizer que os números falam por si. Seja como for, este ano, as mulheres presentes em Cannes quiseram acrescentar um suplemento simbólico à crueza da aritmética.
A preceder a projeção de Les Filles du Soleil, de Eva Husson, 82 mulheres - incluindo Cate Blanchett, presidente do júri, Agnès Varda, Marion Cotillard, Jane Fonda e Claudia Cardinale - protagonizaram um "happening" na escadaria do Palácio dos Festivais, celebrando, justamente, a legitimidade dos seus direitos. O evento evitou facilidades abstratas, afirmando-se mesmo como lugar de uma reivindicação muito específica: a igualdade salarial. E, mais do que isso, a reconfiguração da dinâmica social. Como disse Varda: "Desafiamos as nossas instituições a promover ativamente a paridade e a transparência nas instâncias de decisão."
Infelizmente, Les Filles du Soleil não passa de um banal objeto de cinema. Celebrando a resistência da comunidade kurda pelo reconhecimento da sua identidade histórica, o filme centra-se num grupo de mulheres empenhadas na luta armada, acompanhadas por uma jornalista francesa. Para alem da pobreza de tratamento da temática politica (reduzida a meia dúzia de diálogos estereotipados entre a líder e a jornalista), o filme limita-se a acumular lugares-comuns dramáticos e figurativos típicos de um banal "thriller" de guerra.
Bem diferente na sua complexidade, dramatismo e ate ironia e o novo trabalho do iraniano Jafar Panahi, 3 Visages. Trata-se, em grande parte, de um filme sobre o fator feminino, a começar pelo fôlego trágico da sequência de abertura: são imagens de uma jovem que se filma a si própria com um telemóvel, dirigindo-se a uma conhecida atriz iraniana, dando-lhe conta do facto de a sua família conservadora não a deixar estudar arte dramática. Para tentar compreender o que esta a acontecer, a atriz Behnaz Jafari (usando o seu próprio nome) pede ajuda ao amigo... Jafar Panahi.
A atriz e o cineasta procuram pistas nas aldeias do noroeste iraniano, numa região em que muitos habitantes se exprimem em turco, criando um efeito de infinita tradução e interpretação dos mais pequenos gestos. Tal como em Táxi (vencedor do Urso de Ouro de Berlim/2015), Panahi assume-se como primeiro espectador da sua própria teia dramática, ambiguamente situada entre documentário e ficção. O resultado é um prodigioso objeto de cinema, misto de crueza e ternura na observação do povo iraniano.
Proibido de filmar pelas autoridades do seu pais (este e, de facto, um filme clandestino), o realizador continua a não poder viajar para o estrangeiro. Na sessão oficial de 3 Visages, Panahi recebeu uma prolongada ovação dos espectadores presentes na sala Lumière - as palmas visaram a sua cadeira vazia, um símbolo capaz de transcender todas as línguas.