Uma visita guiada por Monjardino ao seu Oriente
Macau de antigamente
"Gosto muito deste quadro, esteve muito tempo no meu gabinete. Depois roubaram-me o quadro para que eu olhava todos os dias para vir para aqui. É um Macau que já não existe. Com esta avidez do museu de irem buscar as peças todas foram também ao meu gabinete." Carlos Monjardino gracejava referindo-se ao quadro Panorâmica de Macau, de William Anderson. Encontramo-nos no museu que a Fundação Oriente, que criou e a que preside, sonhou há 30 anos. O propósito: celebrar o 10.º aniversário do Museu do Oriente com uma visita guiada em que Monjardino, que nos anos 1980 foi número dois do governo de Macau, escolheria cinco obras.
Sejamos honestos: quando parámos no quadro de Anderson, Monjardino parara já antes naquele biombo seu vizinho que mostra Macau de um lado e Cantão do outro. Isto foi acontecendo um pouco por toda a visita. Ele está ligado a cada metro quadrado. Comprou diretamente muitas das peças. "Eu já comprava peças para mim, lá para a casa, em antiquários. Sobretudo, sou muito pechincheiro, ia sempre à procura das pechinchas, mais até para a fundação do que para mim. Ainda vou às vezes à rua dos tintins em Macau à procura, mas já é raro encontrar alguma coisa." Avançamos museu adentro. "Não venho cá muito, mas já vim muitas vezes. Venho quando me dá na cabeça. Às vezes, uma vez por mês. Acho que a última peça que me trouxe aqui de propósito foi de Timor-Leste, um cavalo de madeira que tenho aí. Quer ver?"
O cavalo de Timor
"Foi trazido in extremis da Indonésia. Estava num antiquário. Foi-nos chamada a atenção. É a vantagem de na fundação se tomarem decisões muito rapidamente, num dia telefonaram, eu disse: escolham as coisas, guardem, que eu mando aí alguém. Passados dois dias estava alguém no avião para ir lá." Foi em 2001. "Estas peças de Timor foram tiradas pelos indonésios e levadas para a Indonésia. O que aconteceu foi que não havia muitas peças de Timor. Era um dos problemas: como é que vamos fazer um núcleo de Timor?"
Demoramo-nos um pouco em frente a essa escultura mortuária de um cavalo e de um cavaleiro: "É o cavalo que transporta a alma de um morto no percurso para a mítica terra de repouso dos antepassados", lê-se na legenda. Quando lhe perguntamos se tomou sozinho a decisão de mandar reservar as peças e de pôr alguém num avião de seguida, o presidente da Fundação Oriente responde: "Vou dizer uma coisa que não era suposto dizer: todas as decisões aqui na fundação são tomadas por mim, sozinho." Depois de elogiar novamente o cavalo - "tem movimento, vai lançado" -, Monjardino pergunta: "Onde é que está a faquinha?" Referia-se às facas feitas para cortar cordões umbilicais, há uma de menina e outra de menino. "De cada vez que vêm cá, os timorenses têm imensa vontade de me pedir para levar isto para lá", brinca.
Garrafa dada por Stanley Ho
"Onde é que está a garrafa do peregrino?", pergunta Monjardino a Joana Belard da Fonseca. "Essa é que é a minha especialidade. Gosto imenso." A diretora adjunta do museu explica que "existem oito ou nove no mundo, há quem diga que menos". "Vale uma fortuna", complementou Monjardino, e continuou: "Eu convenci o Stanley Ho a oferecê-la à fundação. Achei que era um disparate dar aquilo que eles pediam por esta garrafa. Pertencia à mesma coleção do proprietário que nos vendeu a coleção de porcelana brasonada." Monjardino, amigo do magnata do jogo Stanley Ho, referia-se já à porcelana da Companhia das Índias, a que entretanto se deverá juntar uma nova aquisição. "Estamos em vias de comprar uma outra coleção de porcelanas, porque a nossa é só isto, e é muito pouco para um museu deste tipo e para os objetivos que temos. É uma coleção que está na Austrália. Em princípio vamos chegar a um acordo, mas é uma decisão complicada, porque vai custar muito dinheiro."
Voltemos à garrafa. Joana Belard da Fonseca explica que "este tipo de garrafas de peregrino chamam-se assim porque eram utilizadas pelos viajantes para beber líquidos, e a sua forma era inspirada em modelos metálicos islâmicos. Esta tem a particularidade de ter a representação de uma moeda do reinado de D. Filipe II. Terá sido encomendada por um cavaleiro da Ordem de Avis ou da Ordem de Cristo durante o domínio espanhol. Além disso, é dos primeiros exemplares de porcelana azul e branca que são encomendados à China".
O biombo Namban
Aqui a escolha não é difícil. O biombo Namban do Museu do Oriente constaria sempre das escolhas do presidente da fundação. "Nós soubemos que ele ia ser leiloado na Christie"s de Nova Iorque. Como fazia sentido ter uma peça importante Namban, licitámos ao telefone. Foi a peça mais cara que comprámos." Custou meio milhão de euros e Monjardino, que conta normalmente impressionar-se com os preços, diz que tal não aconteceu dessa vez. Pela forma como o olha, valeu cada cêntimo.
"Vê aqui os chamados narizes compridos que somos nós, estes são certamente portugueses. Isto corresponde ao primeiro contacto que tivemos com japoneses e que os japoneses tiveram com europeus. É uma coisa muito marcante em termos históricos. Como são muito raros, e são feitos em materiais muito sensíveis, papel, rasgam-se com muita facilidade. Existem poucos no mundo." À volta de 70, especifica a diretora adjunta do museu. No biombo, lá está a nau vinda de Macau, conhecida como kurofone, com a sua mercadoria a ser desembarcada. Depois está o cortejo, com os narizes compridos, onde se veem padres jesuítas. A sua igreja? Um edifício japonês adaptado às exigências do culto cristão.
Carlos Monjardino chama ainda a atenção para as lacas Namban. Entre elas sobressai um capacete muito sui generis. É um híbrido entre as capotas usadas então pelos portugueses e alguns elmos dos samurais dos períodos Muromachi e Momoyama.
Perguntamos-lhe que museu imaginava, quando estas salas que percorremos eram ainda um projeto. "Este", responde prontamente. "Um museu que espelhasse bastante aquilo que foram as relações culturais entre Portugal e a Ásia. A razão de ser da fundação é essa: encontrar objetos que viessem espelhar essa troca." É um projeto maioritariamente pessoal? "É um projeto bastante pessoal. Há quem diga que é pessoal a mais. Desde o princípio que girou sempre à minha volta - tem que ver com o meu feitio -, fui eu que quis comprar as peças... Até que houve um episódio aqui há uns anos em que apareceu uma coleção, que nada tem que ver com isto a que chamamos fine arts, é uma coleção de arte popular asiática que veio de França. Foi-nos doada. São 14 mil peças." Carlos Monjardino referia-se, claro, à coleção Kwok On, vinda da Association du Musée Kwok On de Paris, que testemunha as artes performativas no continente asiático, dando conta, sobretudo, do panorama religioso e realístico, e que ainda hoje continua em marcha.
Todos os anos, Sofia Lopes, que também acompanhava a visita, e Sylvie Pimpaneau fazem uma expedição a um ponto da Ásia tendo em vista a aquisição de novas peças para a coleção do museu, que contempla teatros de sombras, marionetas, máscaras, cinemas ambulantes ou vestes e demais acessórios da China, da Índia ou da Indonésia. "Aqui o intuito não é documentar o contacto entre o Oriente e o Ocidente, é mesmo documentar o quotidiano e a cultura popular asiáticos", explica ao DN. E dá um exemplo, à medida que passamos pela galeria do piso de baixo, onde agora está patente a exposição Um Museu do Outro Mundo, um diálogo entre o artista José de Guimarães e o acervo do museu que nas suas reservas conta cerca de 17 mil peças. "Em Bali, por exemplo, se alguém se casar, a família pode pedir uma determinada performance de marionetas, para trazer felicidade."
Nos últimos dois anos, e tendo em vista uma exposição que deverá ter lugar já em 2019, as expedições para o acervo Kwok On têm sido feitas no Japão.
O bidé do hotel onde Gulbenkian almoçava
"Este bidé é um bocadinho meu. O restaurante Aviz tinha este bidé lá na casa de banho. Deve ter vindo do antigo hotel Aviz da [Avenida] Fontes Pereira de Melo. Tinha um restaurante muito bom, onde o senhor Gulbenkian comia todos os dias. Um dia os donos resolveram vender aquilo, mas ficaram com o restaurante Aviz, que veio para a Baixa, e de que eu vim a ser sócio. Depois passei a minha quota para a fundação, e quando saímos do sítio lá da Rua Serpa Pinto, eu lembrava-me de ver isto lá - embora estivesse na casa de banho das senhoras - e disse: "Não se esqueçam do bidé, tragam o bidé." É chinês e data da dinastia Qing. "Deve ser século XVIII-XIX", diz Joana. Na fundação, que está neste mesmo edifício do museu, "há uma sala de almoços toda mobilada com coisas do Aviz", conta Monjardino, que recebe lá os seus convidados.