O mundo a preto e branco tal como o vê Alfredo Cunha

Os 47 anos de carreira do fotógrafo apresentam-se nas 500 imagens de "Tempo depois do Tempo" que se revelam na Cordoaria
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A primeira fotografia mostra uma rapariga a assistir a um concerto de Procul Harum, em Cascais, em 1962. Foi assim que tudo começou. Alfredo Cunha era um "miúdo hippie" que gostava de fotografar. "A fotografia sempre esteve na minha vida", diz. O avô e o pai eram fotógrafos, tinham um estúdio e faziam retratos. Alfredo devia ter uns 7 anos quando começou também a fotografar, lembra-se de ir com o pai fazer casamentos. Mas quando cresceu e se tornou um "miúdo hippie" sabia que gostava de fotografar, mas que não era bem aquilo que queria fazer. Começou por fotografar os amigos, os festivais de rock na Amadora, as viagens que fazia, o que via na rua. E depois surgiu o fotojornalismo. Primeiro ainda de forma muito incipiente no Notícias da Amadora e logo a seguir n"O Século, em 1970.

De então para cá passaram 47 anos. Dos mais de três milhões de imagens catalogadas de sua autoria, Alfredo Cunha escolheu perto de 500 para a exposição Tempo depois do Tempo, que se inaugura na sexta-feira no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, em Lisboa. Uma exposição retrospetiva que é "uma viagem no tempo", como ele mesmo diz. Demorou um ano e meio a prepará-la. Como fez a seleção? Ele sorri e responde apenas: "Com muito cuidado."

Não poderiam faltar as fotografias do 25 de Abril nem da descolonização, as imagens do Portugal profundo na crise dos anos 1980, as reportagens no estrangeiro, as festas em Vila Verde, a sua terra. Todas a preto e branco. Alfredo Cunha passou da película para o digital sem dramas e permaneceu no preto e branco por opção. "A minha linguagem, a minha forma de expressão é o preto e branco. Eu nem vejo a cores, é que não vejo mesmo, só me interessa o gradeante de cinza e mais nada."

Uma parte da exposição já esteve na Maia, no ano passado. Mas há dois núcleos novos. Há uma sala só com retratos: são 160, de Cruzeiro Seixas a José Luís Peixoto, de David Mourão Ferreira a Joana Vasconcelos, de Cunhal a Mário Soares (descalço, à secretária), de Salgueiro Maia a José Alves da Cosa, o homem que não disparou o tanque contra Salgueiro Maia, de Marcelo Rebelo de Sousa novo a Marcelo Presidente da República.

E há outra sala com o tema "Três décadas de esperança", evocando o trabalho do fotógrafo com a AMI - Assistência Médica Internacional, que o levou a sítios como o Haiti, o Sri Lanka, o Nepal, Bangladesh... "Um grande trabalho feito por conta de uma organização humanitária e não por um jornal, porque os jornais agora já não estão interessados nestes trabalhos", diz, sem esconder a desilusão.

Alfredo Cunha trabalhou na agência Lusa, no Público, na Visão, Comércio do Porto, Tal & Qual, 24 Horas, Jornal de Notícias, Global Media. Até 2012. "Já não sou jornalista", diz, para mais tarde corrigir: "Eu saí do jornalismo, mas o jornalismo não saiu de mim. Fui muito feliz no jornalismo, fiz muitas coisas e deu-me bagagem para agora ter projetos editoriais e fotográficos meus."

Projetos não faltam. A 1 de abril vai lançar, ali mesmo, no cantinho da Cordoaria onde estão as fotografias de Fátima, um livro dedicados aos 100 anos das aparições. Na Feira do Livro apresenta um outro livro sobre Mário Soares, que acompanhou durante 12 anos. Pelo meio há de voltar à Índia e depois irá a Cuba e ao Brasil, em outubro regressa à Guiné.

Alfredo Cunha tem 64 anos e continua a trazer sempre ao ombro a mala castanha onde carrega as máquinas fotográficas. E nunca esquece o que o pai lhe dizia: "Guarda tudo, fotografa bem, não sejas vulgar e faz coisas compreensíveis, para ti e para o resto das pessoas." "Esta exposição", diz, "é o resultado um bocado dos conselhos do meu pai, ele tinha um conceito muito utilitário da fotografia e encarava a vida dessa maneira. Eu tentei seguir esses conselhos. E embora tenha preocupações de ordem social, sou sempre muito otimista, acho que as coisas vão sempre melhorar."

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