No plateau de Pedro & Inês há amor no ar
Inês de Castro está pálida. Passa da meia-noite e estamos num trilho de floresta perto do Choupal, no Centro Hípico de Coimbra. Convém estar com este ar pálido, ela está morta. António Ferreira vai rodar até às 05.00 da manhã o cortejo fúnebre da rainha mais trágica da história de Portugal. Mas o seu Pedro & Inês não é história de Portugal, é uma adaptação de A Trança de Inês, o romance de Rosa Lobato Faria, uma adaptação muito livre que já está a ser trabalhada há mais de dez anos.
O aparato na floresta é considerável: muitos figurantes, bombeiros para ver se o fogo das tochas não causa incêndios e uma equipa numerosa, para não falar dos cavalos. Inês é Joana de Verona, a atriz que talvez mais filme em Portugal neste momento. Hoje só tem de fazer de morta. Está numa liteira a tentar não respirar, maquilhada com rigor. Antes da sequência ser rodada, aparenta tranquilidade. Verona transporta no seu rosto um real sentido nobre. Foi escolhida num casting que António Ferreira pediu a Patrícia Vasconcelos. Foi também nesse casting que descobriu o seu Pedro, Diogo Amaral, que ainda há uns meses brilhara em Perdidos, de Sérgio Graciano.
Ferreira percebeu que Joana e Diogo funcionavam juntos, que tinham a tal cinegenia. Este Pedro e Inês têm mais duas vidas. Nesta história temos a Idade Medieval, o presente e o futuro. E em ambos os tempos eles apaixonam-se e a tragédia acontece. Para o realizador, este não é um pastelão histórico.
"Não são três mulheres diferentes estas Inês, para mim são como se fossem a mesma figura", começa por dizer Joana de Verona. "Isto dos diferentes níveis de tempo é muito interessante. Pode ser reencarnação, mas, na volta, pode estar tudo a acontecer em simultâneo... Pode estar tudo a ir evoluindo. Não se sabe... Passado, presente e futuro podem estar em mutação", defende o rei D. Pedro, aliás, Diogo Amaral, que está feliz da vida por estar a fazer o segundo filme da sua carreira num curto espaço de tempo. Diogo que já tinha experiência de galope e que maneja o cavalo com destreza.
Esta noite toda a destreza é pouca. O plano que António Ferreira dirige obriga a que atores e figurantes passem devagar sob a câmara com o corpo de Inês levado numa liteira. É um plano complicado porque o caminho é estreito e as tochas assustam os cavalos. "É impossível assim", grita Diogo depois de o seu cavalo virar para trás à última da hora. Solução: em vez de um cavaleiro com tocha estar à frente do cortejo, é o próprio D. Pedro quem segura a tocha.
Olhando para o monitor, antecipa-se um plano de sequência com requintes luminosos góticos, cortesia de uma ideia de iluminação do diretor de fotografia Paulo Castilho, que decidiu apostar na luz das próprias tochas e num projetor que faz as vezes de luar forte. Castilho é também realizador da curta-metragem de culto, O Reino. "Creio que é a primeira vez que alguém filma em Portugal com estas lentes Panavision", diz entusiasmado. Quando à hora do jantar António Ferreira nos mostrava brutos de algum material já filmado, percebemos a escala desta produção - este Pedro & Inês não ficava a dever nada aos grandes filmes internacionais de época.
Se no passado o estilo pode vir a ser mais clássico, a intriga no presente (cenas filmadas na Quinta das Lágrimas) remete mais para uma estética onírica, enquanto no futuro António Ferreira afirma ter-se inspirado em M. Night Shyamalan e em A Vila, distopia inesquecível. O futuro deste Pedro & Inês é pós-apocalíptico e rural.
Para além de Pedro e Inês, todas as outras personagens têm vidas no presente e também no futuro, nomeadamente o fiel escudeiro Estêvão, interpretado por Cristóvão Campos. "Estou a encarar isto um bocado como três curtas. Claro que isto é tudo uma unidade, mas é como se na minha cabeça fechasse e começasse de novo cada período."
Antes da maratona noturna, prepara-se uma cena com cavalos onde Estêvão informa Pedro que Inês foi levada pelos soldados reais do pai. António Ferreira, que trabalha sem storyboard, inventa uma sequência onde vai precisar posteriormente de alguns planos de pick-up, basicamente planos de corte. A guerra aqui é conseguir filmar antes do sol do fim de dia desaparecer. Quando finalmente conseguem um "corta" final, as dezenas de figurantes aplaudem. António Ferreira e os atores riem-se. Cinema com espectadores.
Na maquilhagem, Diogo Amaral pacientemente vê a sua farta barba natural levar uns salpicos de branqueador. O ator, mais habituado ao ritmo das telenovelas, desfruta do tempo que encontra aqui para a preparação para cada cena: "Tenho mais tempo para pensar nas coisas e depois de a cena já estar marcada consigo ainda ir descobrindo pormenores, outros níveis. Quando tudo é mais rápido não conseguimos chegar lá." Numa altura em que provavelmente o cinema português pode vir a precisar do conceito do ator protagonista e galã, a aposta em Diogo Amaral parece ser mais do que acertada.
Na mesma sala de maquilhagem, Joana de Verona está a colocar uma trança artificial. A atriz mal acabou a rodagem de Ouro Verde, a telenovela da TVI, prescindiu de férias e veio logo para Coimbra para fazer o que mais gosta, cinema: "Estou a achar esta produção muito tranquila. O António tem uma coisa boa: interessa-se por saber a nossa opinião." Neste plateau, temos pena, mas não se sentiram azedumes. Passe o cliché, o amor está no ar nesta história de amor...