"Luanda é uma pequena Lisboa, só que pode faltar luz e o papel cavalinho"

Francisco Vidal é angolano, mas, por causa da guerra civil, não cresceu nesse país em que agora reflete na exposição <em>Luuanda Rising</em>
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"Havia muito pouco na escola, ali não vais à FNAC comprar uma revista ou um livro, não vais para a uma biblioteca onde tens acesso a tudo, mesmo a internet não é a mesma coisa. Tive dificuldades a princípio em pedir material aos meus alunos. Mesmo papel cavalinho, os lápis. Às vezes na Papelaria Fernandes..." Interrompemos Francisco Vidal, que falava acerca da sua experiência como professor de desenho em faculdades de Arquitetura de Luanda, quando soa o nome da histórica papelaria lisboeta. Ele sorri. "Luanda é uma pequena Lisboa, onde a escola é muito parecida com a escola que eu tive, só que pode faltar água, luz, e o papel cavalinho. Foi aí que comecei a fazer papel", conta, explicando como aprendeu a "desenrascar-se" com os seus alunos.

Conversávamos naquele que é hoje o seu estúdio de trabalho, paredes-meias com a galeria Wozen, onde o artista angolano, nascido em Lisboa em 1978, filho de mãe cabo-verdiana e pai angolano, expõe Luuanda Rising, que pode ser vista até dia 22. Mas voltemos a Luanda, a esses anos entre 2012 e 2014 em que o artista, depois de viver em Berlim e Nova Iorque, queria perceber em Angola a sua "raiz cultural e na pintura".

Para pagar as contas, Francisco foi dar aulas a futuros arquitetos. Esses que se revelaram, em parte, ser "bailarinos, poetas, pintores. Estavam a fazer Arquitetura para os pais estarem contentes, porque um pai quer que o filho seja arquiteto antes de ser pintor." Outros tinham a idade do seu pai.

Nessas aulas, enquanto falava sobre retrato, Francisco precisava de que os seus alunos conhecessem os seus colegas artistas, de quem lhes falava. Então começou a fazer retratos dessas pessoas. Enquanto conta isto, aponta para a parede onde está um retrato do Mestre Kapela, pintor angolano. Além disso, naquela altura, recorda, "o José Eduardo [dos Santos] estava all over". "Entras num sítio qualquer e tem sempre o retrato do antigo presidente, tipo Jesus quando entravas na primária aqui. Achei que aquele culto da personalidade pode ser estudado, e que podemos nivelar toda a gente ao ser humano. Então comecei a fazer retratos. A coleção chama-se name dropping for the african industrial revolution." Nela contam-se retratos de figuras como Mr T, Gil Scott Heron, Muhammad Ali, Sidney Poitier, o próprio José Eduardo dos Santos, e muitos desconhecidos, embora íntimos ou conhecidos para Vidal: todos ao mesmo nível, todos no mesmo e humano formato.

Luuanda Rising , que vai buscar o segundo "u" ao livro homónimo de Luandino Vieira, Luuanda (1963), é uma reflexão, feita em retratos mas não só, sobre Angola à hora do seu "renascimento", hora essa em que, 38 anos depois, o Presidente mudou. Agora é João Lourenço.

"É uma noite de 30 e tal anos. Há muitas coisas que estão ainda na penumbra. O 27 de maio de 77 [tentativa de golpe de Estado, seguida de forte repressão por parte do regime que causou, segundo a Amnistia Internacional, dezenas de milhares de mortos] foi uma data muito forte, muito importante para a minha vida, de que eu não sei nada. A minha geração, os filhos do maio 77, as famílias estão a pedir uma luz para aquela data. Todos queremos que isso aconteça, que haja uma paz de espírito. Esta exposição diz isso: queremos que a nossa paz interior seja mesmo paz", afirma o artista que em 2015 representou Angola na Bienal de Veneza.

Em Vidal essa paz aparece, talvez, na força e movimento das suas cores, que tantas vezes compõem rostos importantes o suficiente para serem traçados, fixados. Assumidamente influenciado por Jean-Michel Basquiat, mas também por José Malhoa, diz: "Eu adoro o cliché de ser o africano que pinta cores, coisas bonitas, adoro coisas bonitas, e adoro ouvir jazz. Mas o belo transporta uma necessidade de leitura. Temos de perceber o belo, o escatológico, o feio, e o trauma." E continua: "Sofri bastante com a guerra civil também. A primeira vez que vou a Benguela tenho 34 anos. Isso é uma dor. Podia ter crescido ali, não é? O meu trauma está aí, é um trauma suave, e abre-me a porta para a pintura."

LUUANDA RISING

Exposição patente até 22 de novembro, de terça a domingo, entre as 16.00 e as 20.00 na Wozen, rua das Janelas Verdes, 128, Lisboa. Entrada livre

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