David Bowie, 2016. "Olhem cá para cima, estou no céu"

Bowie foi grandioso do início ao fim, são as várias gerações a quem ele cantou a música das suas vidas. Deus morreu no domingo.
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No Evangelho Segundo São João, Lázaro está morto há quatro dias quando Jesus entra no seu túmulo e o ressuscita. A personagem bíblica dá nome ao single de apresentação de Blackstar, o álbum que David Bowie lançou na sexta-feira, dia do seu 69.º aniversário. Mas o cantor nunca foi rapaz de coro, fazia muito mais sentido ele trocar as voltas à história. Dois dias depois de editar o 25.º disco, a família anunciou que ele tinha perdido o combate para um cancro que o mundo desconhecia, após ano e meio de batalha. "Look up here", profetizava na primeira linha da música, "I"m in heaven". Já lá estava, muito antes de sucumbir.

Já não se fazem lendas como David Bowie, capazes de atravessar gerações e sobreviver ao desgaste das pistas de dança. "Não há mais nenhum como ele", escrevia há dez anos Lou Reed na revista Rolling Stone. "Ele acrescentou rasgo e sofisticação ao rock"n"roll, estava sempre a mudar qualquer coisa e era impossível ficar farto dele." Bowie, em abono da verdade, fez da diversidade de estilos a sua escola. Foi Major Tom no final dos anos sessenta, com o homem a chegar à Lua e ele já a caminho de Marte. Em 1972 converteu-se em Ziggy Stardust, um mensageiro andrógino de outro planeta. Quatro anos depois era um aristocrata cocainómano e destrutivo, The Thin White Duke. Foi o superherói da insanidade ainda nos anos 1970, Alladin Sane, e o Rei Goblin das crianças dos anos oitenta no filme Labirinto. Um por todos e todos por Bowie. Se era esquisito e dúbio, só podia ser ele.

Foram essas personagens, difíceis de amar, que o tornaram um deus. David era aliás um tipo tão específico que foi necessário criar todo um movimento para explicar onde se encaixava. Então o cantor tornou-se pai, filho e alma divina do glamrock. A tendência sobreviveu, expandiu-se. Era rock a abrir com saltos altos e batom nos lábios. Roupas escandalosas, nem carne nem peixe. As personagens atrás das canções eram ambíguas, bissexuais - mesmo num tempo em que dificilmente se tolerava tamanha transgressão ao establishment. David Bowie operou a sua revolução privada no pop. Sem ele, dificilmente teriam aparecido bandas como The Cure, Suede ou Placebo. Ou, até, Lady Gaga.

Era uma vez um alien

Antes da explosão, Bowie era David Jones, nome de batismo, e lutou que se fartou para chegar a algum lado. Em 1963, depois de ter aulas de saxofone e terminar o curso de Eletrotecnia em Brixton, Sul de Londres, anunciou aos pais: "Quero ser uma estrela de pop." Tinha 16 anos. Então formou a primeira banda - os The Konrads - para tocar em casamentos, mas fartou-se num instante da falta de ambição dos companheiros. Passou por uma mão-cheia de bandas e até escreveu a primeira versão em língua inglesa de uma canção de Claude François, chamada Comme d"Habitude. Bowie transformou-a em Even a Foul Learns to Love em 1968, mas nenhuma editora a quis lançar. Anos mais tarde, Frank Sinatra haveria de torná-la eterna, atribuindo-lhe uma nova letra e um título renovado: My Way.

A mãe arranjou-lhe emprego como aprendiz de eletricista, David não conseguiu aguentar o posto mais do que uns meses. Fazia espetáculos de mímica e cabaret, contar trocos para ganhar a vida. Até que, em 1969, lançou Space Oddity. Foi a 23 de julho, três dias depois de Neil Armstrong dar os primeiros passos na Lua. Chegou ao top 5 em Inglaterra e tornou-se o primeiro hit icónico de Bowie. Em 2013, o astronauta canadiano Chris Hadfield fez um cover da canção a bordo da Estação Espacial Internacional. David gravou por interposta pessoa o primeiro videoclip feito na órbita terrestre, provas faltassem de que o homem não era deste planeta.

Depois veio uma catadupa de hinos, uns mais políticos do que outros, dispersos ao longo de 25 álbuns e quase 50 anos de carreira. São músicas que cumprem missões específicas. Let"s dance (1983) serve para convocar a festa e Modern Love (1983) para abrir o dancefloor. Há Jean Geanie (1972) e Rebel Rebel (1973), para quem está cheio de energia, Suffragette City (1972) e The Man Who Sold The World (1970) para quem está zangado com ele. Há Heroes (1977) e Absolute Begginners (1984) a suspirarem-nos verdades ao ouvido, China Girl (1983), Oh You Pretty Things (1971) e Moonage Daydream (1972) a darem ritmo à sedução, Changes (1971) para exigir mudanças, que o próprio abraça sem reservas: afinal, em 1975 escreveu Young Americans, e em 1997 I"m Afraid of Americans. E agora Lazarus, como o resto do álbum Blackstar (2016): melancólico, nostálgico, todo um anúncio de saudade. A despedida, vamos.

Bowie era cantor a solo e não era. Músicas como Starman (1972) acrescentavam ao génio da voz a poderosa guitarra de Mick Ronson, e a Trevor Visconti, que o acompanhou no baixo do princípio ao fim da carreira, nunca faltou protagonismo. Além de que trabalhou com uma mão-cheia de outros artistas - à sua imortalidade não pode faltar Under Pressure, gravada em 1981 com os Queen e depois, em 1992, com Annie Lennox, no concerto de tributo a Freddie Mercury. Mas Bowie também cantou com Lou Reed, Mick Jagger, Lenny Kravitz, Arcade Fire, Iggy Pop e, pasme-se, Tina Turner. "Tirando um par de exceções, a maioria dos músicos com quem toquei fizeram os seus melhores trabalhos comigo", lê-se na biografia Strange Fascination, escrita por David Buckley há 15 anos.

A soberba de algumas declarações era, diz o mesmo livro, mais fachada do que sinceridade. "Quase uma extensão das personae a que o cantor dava corpo", diz Buckley. E há alguns episódios a provar o contrário. Da primeira vez que foi aos Estados Unidos, por exemplo, o cantor leu que os Velvet Underground iam tocar a um clube nova-iorquino chamado Eletric Circus. "Eu estava convicto de que era o maior fã deles no Reino Unido", contou uma vez Bowie à revista Esquire, "então pus--me na linha da frente e certifiquei-me de que o Lou Reed me via a cantar todas as canções deles de cor". No fim do espetáculo, bateu à porta do camarim e pediu para falar com o vocalista da banda. Passaram dez minutos a falar sobre composição. "No dia seguinte, disse a alguém que tinha concretizado uma ambição da adolescência, mas então contaram-me que o Lou tinha deixado a banda e eu tinha era falado com o Dog Yule, que o tinha substituído. Lá se foi a ingenuidade."

Tudo menos coisas perigosas

Essa chegada a Nova Iorque foi, no entanto, o período a que o cantor chama as suas trevas. Muita droga pesada, muito álcool e muito sexo fortuito. Um pouco à medida do filme Velvet Goldmine, realizado por Todd Haynes em 1998 e inspirado na sua vida. Curou-se em Berlim, onde atuava em clubes underground e lançou uma trilogia de álbuns míticos, produzidos por Brian Eno: Low (1977), Heroes (1977) e Lodger (1979). Algumas dessas canções, como Heroes, tornar-se-iam hinos vinte anos depois, quando o Muro de Berlim foi finalmente derrubado.

Além de músico, Bowie foi pintor, colecionador de arte e ator. Extraterrestre em The Man Who Fell To Earth, em 1976, e o Homem Elefante, na Broadway, em 1980. Foi prisioneiro de guerra dos japoneses em Merry Christmas Mr. Lawrence e vampiro em The Hunger, ambos de 1983. Cinco anos depois, deu corpo a Pôncio Pilatos n"A Última Tentação de Cristo e em 2006 entrou num filme de Christopher Nolan, The Prestige. Sempre papéis à sua medida. "Explorei tudo o que queria explorar, menos coisas perigosas, tipo ser explorador", disse ao público num concerto do Madison Square Garden, no dia em que fez 50 anos. "Nunca soube muito bem para onde ia, mas sempre soube que não ia ser uma viagem aborrecida."

*"Look up here, I"m in heaven" são as primeiras linhas de Lazarus, o single de apresentação do derradeiro álbum de Bowie, Blackstar, que foi lançado no seu 69.º aniversário, a 8 de janeiro. Morreu dois dias depois, na noite de domingo.

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