Colecionadora de memórias na ficção e no documentário

Agnès Varda é uma singular voz feminina do cinema francês, que se afirmou em plena Nova Vaga.
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Na autobiografia documental As Praias de Agnès (2008), Varda diz que as suas memórias estão ligadas ao próprio ato de viver: "Recordo-me enquanto vivo". Ora não será difícil perceber como os seus filmes sempre estiveram em relação mais ou menos direta com o fôlego das suas experiências, desde a conotação com a Nova Vaga francesa ao estilo experimental, entre o documentário e a ficção. Hoje com 89 anos e 60 de carreira, esta belga radicada em França é senhora de uma obra que se pode ler como um mapa de afetos, rostos, temas e lugares, numa insaciável busca e desejo pelas imagens.

Não é de admirar que assim seja, pois a narrativa entre Agnès Varda e o cinema nunca foi disciplinada; o acaso tem sido companheiro de longa data. Ela começou o seu percurso profissional como fotógrafa (tendo também estudado história da arte), e esse gosto pelo registo do instante, nas suas múltiplas expressões, reflete-se um pouco por toda a filmografia. Foi assim, sem saber nada de técnica cinematográfica, e com o apoio do cineasta Alain Resnais (1922-2014), aqui na função de montador, que rodou o seu primeiro filme: La Pointe-Courte (1955).

Pela estética que forjava, e respetiva filosofia de produção, este título ganhou o estatuto de "primeiro filme da nouvelle vague". Mas foi o extraordinário Cléo de 5 à 7, ou em português, Duas Horas na Vida de Uma Mulher (1962), que a lançou no panorama francês enquanto singular voz feminina. Através de uma experiência temporal - essas tais duas horas na vida de Cléo (magnífica Corinne Marchand), que depois de uma sessão de tarot fica convencida de que tem cancro - Varda retrata uma belíssima flânerie pela cidade de Paris, sob o signo da morte anunciada. E se é verdade que este filme, realizado numa altura em que a Nova Vaga já estava perfeitamente consolidada, surge numa suposta comunhão com o movimento (a afinidade com O Acossado, de Jean-Luc Godard, é instintiva), não se pode dizer que Varda se tenha vinculado a ele. Tal como Resnais e Chris Marker (1921-2012), o seu trajeto tornou-se muito pessoal, ainda que não deixasse de dialogar com os amigos dos Cahiers du Cinéma.

Curiosa, irrequieta e muito autónoma, Varda - que nasceu Arlette, a 30 de maio de 1928 em Bruxelas, mas mudou legalmente o nome para Agnès aos 18 anos - fez o seu cinema à margem de qualquer filiação, deixando apenas que este se moldasse pelo mundo ao seu redor. Por isso, no interlúdio que fez nos EUA, e inspirada pela realidade americana, filmou os Black Panthers (1968) e rodou o seu filme hippie Lions Love (1969); visitou também Cuba nos primeiros tempos do castrismo, e com o material fotográfico fez a curta-metragem Salut les Cubains (1971).

No seu trajeto artístico, sempre com um pé na ficção (recorde-se, por exemplo, o admirável Sem Eira Nem Beira, com Sandrine Bonnaire) e outro no documentário (Daguerréotypes, Mur murs, Os Respigadores e a Respigadora), ou baralhando os dois, a grande linha emocional que liga tudo isto é o cineasta e amor da sua vida Jacques Demy (1931-1990). É como se todos os caminhos fossem dar a ele, porque a sua história partilhada, durante mais de 30 anos, é também a história das suas experiências cinematográficas. Jacquot de Nantes (1991), filme biográfico de Demy, realizado por Varda pouco antes da morte dele, é uma das ternas provas desse amor.

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