Bem-vindos ao Parque Temático de Vasco Araújo, agora sem censura

Um ano depois do primeiro pedido recusado para filmar no Portugal dos Pequenitos, em Coimbra, o artista Vasco Araújo conseguiu, finalmente, autorização da Fundação Bissaya Barreto para mostrar o seu "Parque Temático".
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Em janeiro do ano passado, o artista Vasco Araújo pediu autorização à Fundação Bissaya Barreto, que gere o Portugal dos Pequenitos, em Coimbra, para fotografar e filmar algumas das esculturas e pavilhões daquele espaço para produzir a obra de arte Parque Temático. O pedido foi indeferido. Nem com a intervenção da Universidade de Coimbra foi possível obter a autorização. O artista prosseguiu na sua intenção de realizar o vídeo, usou as imagens que tinha captado como visitante mas, no final, "cegou" a imagem, deixando apenas o ecrã negro com uma tira vermelha. E foi essa a obra que foi apresentada, em maio, em Coimbra, na exposição E daqueles Que não Queremos Saber.

Foram publicadas muitas notícias e começou a falar-se de censura. "A certa altura percebi que este processo era a própria peça. Este é o problema. É a incapacidade de lidar com aquelas representações", explica Vasco Araújo. Pediu uma audiência no Ministério da Cultura para expor o seu caso e terá sido a intervenção da tutela que contribuiu para uma mudança de posição da Fundação Bissaya Barreto. Após um novo pedido do artista, em janeiro passado chegou a autorização necessária. O Parque Temático pode agora ser visto, tal como o artista o imaginou, no espaço do Cão Solteiro, que (porque não há coincidências) fica na Rua do Poço dos Negros, em Lisboa. Além do vídeo, também lá está a correspondência trocada pelo artista com as instituições para documentar todo o processo.

Parque Temático é um vídeo de oito minutos, com imagens do Portugal dos Pequenitos e das estátuas dos negros que estão à entrada do parque e dos pavilhões que já foram das colónias e agora são dos países de língua portuguesa. Rostos pretos com carnudos lábios vermelhos - a fazer lembrar a estética de Tintim no Congo, diz Vasco Araújo. O que diriam estas estátuas se falassem? Qualquer coisa como isto:

- Mas alguém me explica por que raio estamos aqui e em cima destas colunas?

- Não sei, mas não quero estar aqui. Não pertenço a este lugar.

- Fomos transformados em mulheres-objeto, homens-mercadoria, aprisionaram-nos no calabouço das aparências, passámos a pertencer a outros.

É assim que as imagina o artista. Perplexas pelo facto de estarem ali. Estátuas sem nome e sem identidade, que não representam ninguém mas antes têm a pretensão de representar um povo. Ou um estereotipo de um povo. Um povo resumido a uma aparência.

Inaugurado a 8 de junho de 1940, no mesmo ano em que se realizou a Exposição do Mundo Português e seguindo um projeto do mesmo arquiteto, Cassiano Branco, o Portugal dos Pequenitos herdou da exposição aquelas estátuas. Fazia sentido. O objetivo de ambas as iniciativas passava por exaltar o "império português", na sua grandeza e na sua diversidade, mostrando as características tradicionais de cada região. "O Portugal dos Pequenitos servia para educar as crianças, mas também para as instrumentalizar segundo as ideias do Estado Novo", diz Vasco Araújo. "O problema é que entretanto passou o Estado, passou o 25 de Abril, passaram mais de 40 anos e estamos na mesma." O problema é que tudo ali está na mesma, os objetos que estão nos pavilhões, os textos que os acompanham, nada mudou. "Não sou historiador nem antropólogo, sou artista. Não estou a dizer que as estátuas têm de sair dali, aliás, sou muito contra essa limpeza do passado. O que eu faço aqui é colocar questões. Fazer que as pessoas se questionem: qual é a nossa posição em relação a isto?"

A ele, por exemplo, faz-lhe confusão que o parque receba cerca de 200 mil visitantes todos os anos e que nenhum deles se questione, que haja uma apatia social. "Há um passado colonial que é não é confortável para nenhum de nós mas que não pode ser ignorado e ter esta atitude de achar que isto não é importante, que não quer dizer nada, também não é solução." Até porque pode ser importante para muitas pessoas que se sentem ofendidas com o que veem. "Estas estátuas, além de serem um estereótipo, estão a operar no domínio do exotismo, que é um conceito perigosíssimo, para já porque é pejorativo e depois porque cria um movimento de atração e repulsa: eu desejo e represento mas, ao mesmo tempo, afasto-me porque não reconheço, não me identifico, tenho medo."

Esta é uma temática recorrente no trabalho de Vasco Araújo: "O meu trabalho não é sobre negros ou sobre África, nem sequer sobre o colonialismo ou o pós-colonialismo, é sobre como é que nós nos construímos em confronto com os outros, seja um confronto psicológico, social, político", explica. "Nós continuamos sempre os mesmos, ainda somos os mesmos que escreveram as tragédias gregas. Operamos da mesma forma, matamos, conquistamos, amamos, nós temos é uma tecnologia muito mais avançada que mudou o nosso dia-a-dia mas na realidade nas coisas essenciais e na forma como nos relacionamos uns com os outros é igual."

Parque Temático
De Vasco Araújo
Rua Poço dos Negros, 120, Lisboa
Até 21 de abril
de quinta a sábado, 16.00-20.00

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