Factum: Onde Marina Abramovic é vizinha de um faraó

Adam Lowe criou "um gigante parque de diversões para artistas". Ali fazem-se obras contemporâneas e guarda-se património (às vezes vivo, como os indígenas Kuikuro)
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A nordeste do centro de Madrid há um grande armazém com pequenas letras junto à campainha, onde se lê: "FACTUM ARTE". A porta abre-se para o escritório onde o busto da artista Marina Abramovic convive com livros, papéis, e imagens que, para quem estivesse atento, poderiam dar pistas que nos levam ao mundo inteiro.

Atravessamos um pátio até ao ateliê onde uma impressora vai burilando, sozinha, uma obra de um dos mais importantes artistas dos nossos tempos (sem que se possa dizer o seu nome). O ruído da máquina faz vizinhança com o silêncio imperturbável de dois enormes leões assírios com asas e rosto humano, erigidos em Nimrud, antiga Mesopotâmia e atual Iraque. Os verdadeiros estão no British Museum, em Londres, onde a Factum os registou em 2005, usando tecnologia que não implica contacto, para depois, no ateliê, reproduzir fac-símiles exatos. O que vemos são, afinal, protótipos, de onde depois foram feitos os moldes. Os fac-símiles foram oferecidos à Universidade de Mossul, no Iraque, e entretanto destruídos, quando o Estado Islâmico tomou a cidade. Agora a Universidade já reabriu, e em breve aqueles dois leões que faziam parte do palácio do rei assírio Assurnasirpal II ( 884 a 859 a.C) voltarão a Mossul, em novos fac-símiles, trabalhados pelas mesmas mãos que, noutro dia, podemos encontrar a fazer peças de Anish Kapoor, Marina Abramovic, Marc Quinn, ou Julião Sarmento.

Parque de diversões para artistas

"Parte da ideia original foi construir um lugar onde a escultura, a pintura, ou a impressão não estivessem separadas: um ateliê do século XXI. Onde as novas tecnologias, o artesanato, e as diferentes transformações de material estivessem juntos. O que é difícil compreender é como a tecnologia que usamos e desenvolvemos para artistas contemporâneos é igualmente importante para a recolha, a documentação, e o estudo históricos, e às vezes para fazer fac-símiles. Nunca esperei que o lado histórico e o contemporâneo colidissem da maneira que colidiram", diria pouco depois Adam Lowe, fundador da Factum em 2001 e diretor desde aí. A passo rápido, sempre rápido, haveríamos de o encontrar em vários pontos do enorme ateliê a que chama "um gigante parque de diversões para artistas". Esta é a sede, embora a Factum esteja também em Londres e em Milão.

Na última vez em que o víramos estávamos a quase 20 metros do chão, e em Lisboa. Uma equipa da Factum pintava o teto da igreja de Santa Isabel, dando corpo, e cor, ao projeto maior do pintor Michael Biberstein (1948-2013), que morreu sem o concretizar: Um Céu para Santa Isabel, 800 m2 que ainda hoje fazem levantar a cabeça de quem lá entra. Nessa altura, Jordi García Pons, da equipa que ficou cerca de três meses em Lisboa, acabara de pintar, recriando-o com base em toda a informação disponível, o quadro de Caravaggio Natividade com São Francisco e São Lourenço, roubado em 1969, e assim devolvido ao Oratório de São Lourenço, em Palermo. Nesta última semana, um mafioso italiano admitiu tê-lo roubado, sem que por isso se lhe conheça, ainda assim, o rasto.

E lá estava Jordi, numa reunião que tomava lugar na copa da Factum, onde dali a nada parte das cerca de 50 pessoas que trabalham naquele enorme ateliê, entre pintores, escultores, engenheiros, conservadores, arquitetos, especialistas em metais, ou douradores, viriam almoçar. Fora daqui há quem trabalhe para a Factum quase em igual número, fora as equipas já formadas em lugares como Luxor, no Egito, onde a Factum construiu fac-símiles de túmulos dos faraós Tutankamon, que pode ser visitado no Vale dos Reis, em Luxor, agora que o original está protegido, e Seti I, agora em exposição no Museu de Arte Antiga de Basileia. Mas lá iremos.

Agora voltamos a sair para o pátio coberto de neve, passando pelo pequeno cão salsicha de um dos trabalhadores que vai vagueando pelos ateliês. Subimos umas escadas estreitas que levam a outra sala. Jordi abre a porta e aparece um enorme quadro de um dos grandes nomes da história da pintura (o nome não pode ser referido até que a obra seja apresentada) e cujo traço é imediatamente reconhecível. Foi destruído pelas SS no final da Segunda Guerra Mundial, e agora a Factum trouxe-o de volta ao mundo palpável. O processo foi longo. Jordi pintou-o, depois foi digitalizado e confrontado com as fotografias a preto e branco que existem, para ser corrigido, depois algumas partes foram novamente pintadas, e assim por diante. O quadro está agora terminado, mas, diz ele, este é "o início da conversa". A discussão sobre o que era (ou pode ser) o quadro ainda está aberta. Em Lisboa, Jordi chamara à maquete de Biberstein uma "partitura" que era preciso interpretar, e aqui o mesmo acontece, embora com outras pistas.

As grandes questões levantadas pelo trabalho desenvolvido pela Factum Foundation for Digital Technology in Conservation, que surge depois da Factum Arte, em 2009, em campos como o de recolha de património, usando tecnologias pioneiras, e da criação de fac-símiles a partir de túmulos egípcios ou pinturas do século XVI aparecem logo enquanto se caminha pelos ateliês. Questões acerca da autenticidade das obras e da experiência destas, ou da diferença entre uma mera cópia e um fac-símile.

Vamos passando por partes do túmulo de Seti I. Mas um possível arrepio é substituído pela consciência de que se trata de rascunhos. Até do sarcófago, que pertence ao museu Sir John Soane, em Londres, foi feito um fac-símile. A frase escolhida para epígrafe do texto em que o britânico Adam Lowe explica o processo de digitalização do túmulo poderia quase servir de carimbo aos trabalhos da Factum Foundation: "A tradição não é o culto das cinzas, mas a preservação do fogo."

A frase, atribuída a Thomas More e a Gustav Mahler, ganha forma, por exemplo, no que aconteceu com o túmulo de Tutankamon. O registo minucioso que dele foi feito permitiu que quem o quisesse estudar se pudesse demorar nele o tempo que fosse necessário, e olhá-lo através dos ângulos que quisesse, sem o deteriorar como a presença e o calor e suor de milhões de turistas fizeram ao longo de anos no Egito. E foi através dessa possibilidade trazida pela recolha da Factum que o investigador Nicholas Reeve avançou, em 2015, ter descoberto fortes indícios da existência de uma segunda câmara funerária, atribuída a Nefertiti, por trás da câmara onde está o sarcófago de Tutankhamon, embora desses indícios ainda não tenha surgido uma conclusão.

Uma capela de Roma numa sala

Entramos numa sala polivalente onde normalmente são dados cursos, ensaiam-se exposições, ou preparam-se suportes e superfícies para impressão. Ao fundo da sala está a capela Borgherini, da Igreja de São Pedro em Montorio, de Roma, pintada por Miguel Ângelo e Sebastiano del Piombo no século XVI. No ano passado, a National Gallery, em Londres, mostrou numa exposição o fac-símile da capela - com as pinturas A Flagelação de São Pedro e de São Francisco, Transfiguração, e São Mateus e Isaac - feito pela Factum, usando técnicas semelhantes às do século XVI nalgumas partes do processo, a partir dos dados que recolheram através de 2400 imagens obtidas por câmaras fotográficas. O grau de acuidade é tal que o fac-símile reconstrói até o que foi uma tomada numa das paredes da capela.

Na mesma sala está uma enorme obra do artista saudita Abdulnasser Gharem: Hemisphere. Uma escultura que é metade cúpula, metade capacete, carregada de herança islâmica, e cuja conceção combinou impressão em 3D e técnicas tradicionais. Continuamos.

Entramos naquilo que é uma espécie de apartamento de Adam Lowe, ainda dentro da Factum. Perguntamos-lhe se vive ali. "Às vezes", responde. Mas há na Factum mais camas para quem precisar de passar a noite, normalmente para artistas que, em colaborações de trabalho, precisam de ali permanecer por um tempo. Depois de começar, a conversa com o diretor é interrompida pela entrada de Rafa Rachewsky, outro daqueles que trabalharam na Igreja de Santa Isabel. Traz uma impressão na mão, do tamanho de uma folha A4, e mostra-a a Adam. "Está muito melhor. Até visto daqui. Demasiado preto no azul, mas melhor", diz, enquanto olha para a impressão. "That"s fucking nice", conclui.

Não se devem esperar de Adam histórias à Indiana Jones. Ainda que as possa ter. Quando o questionamos acerca da abordagem da Factum para o Médio Oriente nestes dias e sobre a destruição do património na Síria e no Iraque pelo Estado Islâmico, responde prontamente: "Acho que as guerras destroem muito mais do que o Estado Islâmico (EI) destruiu, acho que o turismo destrói muito mais do que o EI destruiu. O EI é um desses alvos emocionais que os media adoram. A iconoclastia sempre existiu. É um assunto que fascina as pessoas: seja o Hitler a queimar livros ou os britânicos a decidir bombear Dresden por vingança. Os fundamentalismos sempre tentaram eliminar os pensamentos dos outros. É muito triste, mas parece ser uma parte da natureza humana."

Mas sim, adianta Adam, "há zonas de conflito que precisam [de intervenção] urgentemente, contudo as zonas de conflito são as piores para fazer recolha de património cultural. Queremos fazê-la em tempos de paz, e com alguma visão política. Não queremos estar sempre a reagir a crises políticas." Neste momento, continua o diretor, a Factum Foundation está "concentrada em treinar operadores locais. Em Luxor já temos três operadores plenamente formados que podem fazer tudo: desde construir scanners [3D] a repará-los se algo de errado acontecer, operá-los, ou processar a informação [por eles recolhida]. Mas claro que há muitas coisas que não conseguem fazer. Também é precisa uma estrutura de apoio por trás. Estamos a fazer manuais em inglês e em árabe; leva muito tempo, mas estamos a chegar lá."

Querem treinar pessoas na Síria e já têm contactos em Alepo; esperam começar a fazê-lo na Tunísia e na Algéria; começaram recentemente um projeto na Arábia Saudita - tanto para fazer a recolha dos dados de património cultural como para trabalhar com artistas contemporâneos, no Misk Art Institute -; trabalharam na recolha de património para "um arquivo islâmico no Daguestão, um mosteiro cristão no norte da Rússia", país onde agora também estão a dar apoio à constituição de "um arquivo judaico". Adam começa a falar dos projetos da Factum na documentação de monólitos de Cross River na Nigéria, ou das impressionantes formações rochosas , esculpidas pelo vento, e igualmente pintadas por mão humana, em pleno deserto do Saara, em Ennedi, do norte do Chade. Rosario Cornejo, responsável pela comunicação da Factum, interrompe-o: "Ela falou com o Ferdinand."

Ferdinand Saumarez Smith fez parte da equipa que foi para o Chade. Enquanto falava acerca do que registaram, Ferdinand tenta mostrar parte da informação, mas o computador está a processá-la. Conta que, na última viagem, tiveram informações sobre a presença de alguns rebeldes. "Falámos com o nosso condutor, um tipo fantástico, e perguntámos: "Então, e estes rebeldes?" E ele: "Não se preocupem, conheço muitos deles, vocês vão ficar bem." E não foi um problema." Formado em arte, Ferdinand fez do seu mestrado logo um projeto com a Factum, trabalhando na transformação de desenhos de Piranesi, o arquiteto e gravurista do século XVIII, de objetos nunca materializados em obras tridimensionais, depois mostradas no museu Sir John Soane, em Londres.

Ver uma pintura sem a cor

Também Carlos Bayod está sentado à frente do computador quando entramos na sala onde trabalha. Contudo, passa muitas horas fora dali, a usar ou a ensinar a usar o scanner 3D Lucida, desenvolvido pelo artista espanhol Manuel Fraquelo, que, com Adam Lowe, criou a Factum, para digitalizar o relevo de superfícies planas, como a das pinturas, com uma acuidade como nenhuma outra antes dela. Daí que, à primeira vista, não se entenda o que está por todo o lado naquela sala: são superfícies brancas apenas com o relevo em realce. A National Gallery comprou uma Lucida, e muitas instituições, como o Museu do Prado, já a usaram para digitalizar parte das suas coleções.

A Lucida foi usada também para o túmulo de Seti I e, nos últimos tempos, para os dezasseis painéis que compõem a obra Políptico Griffoni, pintada por Francesco della Cossa em 1473, que teve lugar no altar da Basílica de São Petronio, em Bolonha, antes de ser desmantelada em 1725. A partir daí, os diferentes painéis seguiram diferentes caminhos, e hoje encontram-se em nove museus ou coleções diferentes, espalhados por Itália, Inglaterra ou Estados Unidos.

"Durante séculos não foi possível ver todos juntos. Cada um foi restaurado de maneira diferente e cada museu aplicou parâmetros diferentes de restauro. Quando os pomos juntos, podemos ver quais foram mais restaurados, ou quais estão em pior estado." Depois de terminado, o fac-símile da Factum Foundation seguiu para Bolonha. Foi feito a partir do material recolhida pela Lucida, que, conta Carlos, arquiteto de formação, demora quatro horas a registar um metro quadrado de superfície através de um sistema de laser.

No computador, mostra-nos um dos painéis em alta resolução. Vai aproximando, aproximando, e de repente vemos onde o quadro estala, e como cada pigmento o reveste, mais do que se estivéssemos perante a tela, sobretudo se a víssemos num museu, onde há uma distância de segurança a respeitar ou um vidro no caminho. "A ideia é tê-lo acessível aos museus, para eles poderem trabalhar." Além disso, acrescenta Bayod, há sete anos na Factum, "se este quadro fosse estragado ou desaparecesse esta informação seria muito importante. Podemos usá-la para estudar ou para fazer uma reprodução física."

Ainda no computador, Carlos desliga a camada de cor, e ficamos apenas a olhar para o relevo captado pela Lucida: com as marcas do tempo, da pintura. Depois regressa a cor, e torna-se claro como a pintura apareceria de outra maneira caso o relevo não estivesse lá. Além da Lucida, outra das "estrelas" da Factum é Veronica - também concebida por Manuel Franquelo -, preciosa para a produção de obras de arte contemporânea e que, através da fotogrametria - usada para efetuar medições rigorosas a partir de fotografias - tem como principal vocação digitalizar rostos ou objetos, representando-os não como superfície plana, mas como objeto tridimensional, tanto para ser visto como para ser reproduzido.

Uma das vertentes mais importantes da Factum, explica Carlos, é a da educação. Ele ensina em Madrid como na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, ou em qualquer museu, num qualquer ponto do mundo em que a Lucida seja necessária. Importa-lhes explicar, argumenta, "o conceito por trás do que estamos a fazer, a importância de ler objetos de uma forma diferente. Não se trata apenas de restaurar objetos: a maior parte do trabalho que fazemos não implica contacto, é compreender um objeto sem lhe tocar."

Adam Lowe é formado na Ruskin School of Art, de Oxford. Perguntamos-lhe se esse ambiente multidisciplinar em que foi educado se reflete no que é hoje a Factum, que "nunca teve um plano de negócio" e que "foi crescendo, crescendo, para corresponder às necessidades dos artistas contemporâneos". Ele próprio artista, depois dedicado à impressão e às tecnologias 3D, fala da semelhança que existe entre um filósofo a refletir sobre inteligência artificial e a forma como a mente de um pintor funciona.

"Muito do que importa à Factum é romper as fronteiras que separam disciplinas. Muitas das pessoas com quem trabalho são antropólogos, historiadores da ciência, filósofos, músicos." E é essa multidisciplinaridade, defende, que ajuda a compreender a obra "de forma mais profunda" a partir dos diferentes recursos da Factum, dos scanners à fotogrametria, à documentação recolhida: "Se pudermos combinar todos eles num arquivo digital podemos cruzar referências e, de repente, temos um sentido completamente diferente do que essa pintura ou escultura é."

Na transmissão da abordagem em relação à arte que a Factum tem levado a equipas locais espalhadas pelo mundo ou a universidades, perguntamos-lhe se a sua prioridade é ensinar a perspetiva tecnológica, em que são pioneiros, ou a filosófica. "Para mim a técnica é uma coisa muito filosófica. Não vejo diferença entre as duas coisas. Acho que se trata de entender o que é uma obra de arte, e porque é que uma obra de arte é significante ou importante. [Hoje] As pessoas vão a museus não para ver coisas que são esteticamente bonitas ou válidas, mas para entender toda a história de porque é que aquele objeto foi selecionado: o que lhe aconteceu, o que mudou, de onde vem. Trata-se de levar as coisas ao seu contexto. Para mim, é por isso que a arte é importante: permite-nos ver o mundo pelos olhos de outras pessoas. E pensar pensamentos que não tínhamos tido antes. Podemos olhar para um túmulo no Egito e compreender muito claramente o pensamento de quem acreditava em deuses muito diferentes e tinha filosofias muito diferentes; mas há uma comunicação que é possível."

"Original? Como eras aos 4 anos?"

Em qualquer passagem por corredores ou ateliês da Factum há algo a assinalar. Mesmo que já ali se tenha estado: é Paolina Borghese, esculpida por Antonio Canova, que nos espreita numa pequena réplica da estátua que pertence à Galleria Borghese, em Roma, ou ainda, suspensa do teto, tão imponente como leve, a enorme oliveira do arquiteto Michele de Lucchi.

O túmulo de Seti I regressa à conversa que continua, embora devesse terminar em breve, para que possamos ainda visitar a sala das tapeçarias, onde também Paula Rego viu uma obra sua concretizada: A Filha da Águia, exposta em 2016 na galeria Marlborough, em Londres.

É possível saber que aspeto tinha o túmulo na origem, três mil anos antes de Giovanni Battista Belzoni o descobrir em 1817? "Não sabemos como era na sua origem. Não temos registos visuais. Temos provas do século XIX que permitem perceber como é que a peça envelheceu, como mudou, porque tem o aspeto que tem. Qualquer tentativa de tentar perceber como era quando foi pintado é muito subjetiva: podemos fazê-lo melhor ou pior. Mas a analogia para mim é sempre vires ter comigo e dizeres: "Quero um retrato meu, mas quero-o como quando tinha 4 anos." Bom, eu posso imaginar como é que eras, até posso pedir-lhe algumas fotografias, mas continuaria a ser uma interpretação subjetiva de ti num estado há tempo atrás."

Um caso como o do Políptico Griffoni , onde cada painel teve o seu restauro, põe em evidência o percurso da obra, da sua origem até chegar aos nossos olhos, contemporâneos. Adam pergunta em relação a uma pintura demasiado limpa: "Estamos realmente a olhar para o quadro? Ou para a projeção do quadro de alguém? Para mim isto foi sempre algo crítico: estamos a ler não só o presente e o que fazemos agora, mas também como gerações anteriores amaram, valorizaram, e consideraram estes objetos importantes, ou não. Muitas coisas sobreviveram porque foram negligenciadas, e muitas coisas foram destruídas porque foram valorizadas. Há sempre uma relação estranha entre como amamos uma coisa e como tomamos conta dela."

Uma tribo feita arquivo vivo

Foi também na Factum que Ferdinand Saumarez Smith mostrou no seu telemóvel como soam as flautas sagradas em rituais estritamente masculinos dos Kuikuro, indígenas que vivem em Xingu, na região brasileira de Mato Grosso. O som, gravado a 360º, faz parte do material recolhido por uma equipa da Factum, por proposta do People"s Palace Projects, centro da Universidade de Queen Mary, Londres, para que colaborassem com o cineasta Takuma Kuikuro. A missão era a de recolher material da aldeia de Ipatse, onde os Kuikuro habitam e que em breve deixarão. Faz parte da sua cultura mudar de aldeia a cada três ou quatro décadas. Desta vez, o processo foi acelerado pelo estragos causados por um raio numa das ocas (os edifícios em que vivem).

Adam conta que os drones que captavam a vista da aldeia se tornaram como "jogos para as crianças". Além destes, foram usadas técnicas que vão do uso do scanner à fotogrametria, para retirar dados tridimensionais em diferentes escalas, algumas delas ensinadas aos Kuikuro que quiseram aprender. Foram gravados o canto, as danças, o som debaixo da água do rio - tão precioso como ameaçado para os Kuikuro - a arquitetura, ou os montes das térmitas, que Adam Lowe rejeita constituir um novo nível no trabalho da Factum: "Também registámos os painéis de mármore de São Marcos, em Veneza."

"Como cultura, eles desafiam a forma como pensamos a cultura material. Estas pessoas não estão obcecadas com a oca como oca. Mas vão usar a nova da mesma forma, com penas e decorações e tudo isso. Não é acerca de manter aquela configuração particular: é acerca de como ela interage com a cultura", explica Ferdinand.

O resultado deverá ser mostrado sob a forma de realidade virtual em Canarana, onde os Kuikuro farão de uma oca um centro cultural, no Museu Horniman, em Londres, e, possivelmente, em 2019, na Bienal de Veneza. Adam diz que este projeto está na sua fase favorita: "Enquanto não há resposta. Há diferentes ingredientes, e é preciso perceber o que fazer."

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