Alfredo Jaar: "O meu estúdio era apocalíptico, mas a minha casa era um lugar seguro"

Alfredo Jaar, chileno radicado há décadas em Nova Iorque, define-se como um arquiteto que faz arte. Encontramo-lo antes da conferência que deu na sexta-feira no MAAT, em Lisboa
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A sua obra é testemunha do mundo que Alfredo Jaar (n. 1956) não se cansa de ler "nas entrelinhas", sempre. Seja com as silhuetas das vítimas de Pinochet no Chile, de onde é natural, com o extenso trabalho em torno do genocídio no Ruanda, com a repetição da cara da pequena Nguyen Thi Thuy, para contar como os refugiados vietnamitas eram tratados nas prisões de Hong Kong ou, mais recentemente, com o Jardim do bem e do mal, instalado no parque de esculturas de Yorkshire, Inglaterra, uma pista material das prisões secretas da CIA pelo mundo inteiro.

Artista, arquiteto e cineasta. Encontramo-lo antes da conferência que daria nesta sexta-feira no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), onde no futuro, ainda sem data definida, terá uma exposição.

Li que começa sempre o dia ao ler vários jornais. De onde vem esse hábito?

O meu pai era um grande leitor de notícias e não conseguia começar o dia sem ler os jornais. Para ele estar informado era fundamental. Ele ensinou-nos a tentar entender o mundo e tínhamos muitas discussões em casa sobre a situação política do mundo. Desde cedo fiquei fascinado pelas notícias e tornei-me num viciado em notícias. Todos os dias estou no meu estúdio das 8 às 8. Nas duas primeiras horas, antes de os meus assistentes chegarem, vejo 37 jornais. Estou interessado em entender o mundo. Tudo o que sei sobre o mundo aprendi-o sendo artista, mas não sou um artista de estúdio, sou um artista de projeto. Não crio obras no meu estúdio a partir do nada. Todas elas estão ligadas à vida real e cada uma responde a um contexto muito específico. Para entender esse contexto eu preciso de entender o que está à minha volta, e entender o mundo em geral. É um modo de vida.

Foi importante ter essa ferramenta em casa durante os anos de Pinochet no Chile?

Eu acho que sou a resposta a todos os estímulos que recebi. É verdade que estar no Chile durante o golpe militar foi um estímulo importante, e claro que reagi a isso, mas recebi muitos outros estímulos. Vivi 10 anos numa ilha francesa, andei no liceu onde todos os intelectuais de Martinica estudaram e ensinaram, Aimé Césaire escreveu ali Cahier d'un retour au pays natale, fui influenciado por isso, e pelo facto de ter sido mágico quando era miúdo, durante sete anos, por ter estudado arquitetura, ter mudado para para Nova Iorque, tudo isso influencia.

O seu método de trabalho é mais parecido como um ateliê de arquitetura do que com um ateliê de artista?

Sim. Defino-me sempre como um arquiteto que faz arte, e a minha metodologia é a da arquitetura. Para um arquiteto o contexto é tudo. Um arquiteto não poderia começar a pensar num projeto sem saber de onde vem o sol, de onde vem o vento, quem vive na porta ao lado, quem vive do outro lado da rua, por exemplo, e outras questões. Como artista ponho as mesmas perguntas. Preciso de entender onde estou, antes de agir. Não vou atuar no mundo sem entender o mundo, uso isto para tudo na vida. É o meu modus operandi, o meu manifesto. Preciso de passar por esse processo de compreensão antes de agir. Essa é a fórmula que uso como artista. Quando tenho um lugar não o vejo como um espaço físico, vejo-o como espaço político, social, cultural. E só agirei quando o entender.

Quando percebe que é hora de começar a investigar mais profundamente e de criar?

Para mim é muito interessante ver como acontecimentos, realidades ou noticias são contados por diferentes pontos de vista ideológicos. A verdade está entrelinhas, nunca no que aquele jornal diz ou o outro. Aprendi a acrescentar e acrescentar e acrescentar informação e depois ler entrelinhas. Esse é um exercício que faço diariamente e que só contribui para a paisagem em geral. Mas não é aqui que o meu trabalho nasce. Isto é apenas material que me estimula, que me torna atento, e tento fazer ligações entre acontecimentos por todo o mundo. Quando sou convidado para fazer um projeto, vou àquele lugar e começo uma investigação muito mais profunda do que apenas ler os jornais a partir do meu estúdio em Nova Iorque. Ali falo com as pessoas, investigo o sítio, quais são os mais importantes naquele lugar, falo com políticos, jornalistas, artistas, intelectuais, leio os media, a história, a ficção, a não-ficção, vejo televisão. Só ajo, só começo a criar arte quando tenho uma determinada quantidade de informação e me sinto responsável. Sinto que compreendo, então posso agir. Não tenho ideias antes de compreender. Controlo-me.

Sentir-se responsável para criar significa também que tem a responsabilidade de o fazer?

Sempre senti que os artistas são extremamente privilegiados, porque a sociedade deu-nos o tempo e os recursos para pensar sobre o mundo e criar novos modelos de pensar o mundo. É por isso que acho que este privilégio vem sempre com a responsabilidade de responder à realidade que encaro, como artista, de pôr perguntas, sugerir respostas, especular, criar um novo modelo de pensar certas realidades.

Conseguiu logo viver só da arte?

Comecei como arquiteto durante cinco anos, quando me mudei para Nova Iorque. Tinha uma vida dupla, era arquiteto de dia e artista de noite. Depois comecei a ter exposições, em 1986 fui à Bienal de Veneza, e em 1987 à Documenta, em ambas fui o primeiro artista da América Latina. Então comecei a vender trabalhos e pensei: vou experimentar ser artista a tempo inteiro.

Quando vai aos sítios em que trabalha e fala com as pessoas apresenta-se sempre como artista? É fácil para elas entender esse seu papel?

Apresento-me sempre como artista e isso lança logo muitas discussões sobre o que é a arte, porque as pessoas não estão à espera de que um artista faça estas perguntas. É uma boa forma de entrar nas suas vidas. Aprendi tanto destas conversas, nestes processos de pesquisa.

Hoje passamos por milhares de imagens todos os dias. O seu trabalho é muito económico no uso que faz delas. Como é que se relaciona com este aspeto do nosso tempo?

Arte é comunicação e percebo a dificuldade de comunicar com outro ser humano. A comunicação é muito difícil. Imagine dois seres que não se conhecem, não falam a mesma língua e de repente tentam comunicar, é realmente um milagre que o mundo seja o que é, e que consigamos comunicar. Na arte é ainda mais difícil, porque é uma linguagem que tem um determinado vocabulário, que a maioria das pessoas não conhece. É por isso que há tamanha separação entre a arte contemporânea e o público em geral. Eu tenho de saber que comunicação não é apenas atirar uma mensagem, é preciso ter uma resposta. Se não há uma resposta, não há comunicação, e não há arte. Acho que este é o erro que a maior parte da arte contemporânea comete: acha que porque põe algo no mundo comunica, mas não. Por outro lado, acredito no poder de uma única ideia. A arte tenta dizer demasiadas coisas ao mesmo tempo. Para mim é importante focar-me, chegar a uma única ideia.

O que quis dizer com o poster You don't take a photograph, you make a photograph oferecido na sala de exposições?

Estava a tentar sugerir as pessoas que fossem responsáveis. Somos bombardeados por milhares de milhões de imagens todos os dias. As pessoas produzem-nas com os telemóveis e põem-nas no Twitter, no Instagram, no Pinterest, como se não fossem nada. Eu queria sugerir que as imagens não são inocentes, estão cheias de significado. Quando alguém tira uma fotografia está a recortar a realidade, a tomar decisões naquele preciso momento. Muitas dessas imagens não têm significado algum, ou são irresponsáveis.

Como é que avalia a forma como as pessoas reagem ao seu trabalho?

Aprendi muito com a reação das pessoas. Quando tenho uma exposição gosto de passar tempo lá, observo as pessoas, a sua linguagem corporal, as suas reações, falo com as pessoas. É assim que aprendo, é a única forma. Muitas vezes passa incógnito, porque não tenho uma imagem pública; às vezes falo com as pessoas e elas nem sabem que sou o artista.

Lembra-se de algum episódio em particular?

Muitos dos meus trabalhos fazem as pessoas chorar, reagir de formas muito especificas, para mim todas estas coisas são sinais de que a obra tem um efeito, é o que estou a tentar fazer.

Ao mesmo tempo as suas obras são muito subtis. Aprendeu isso ou teve-o sempre presente, não expor demasiado?

Interesso-me por poesia. Para mim arte é um equilíbrio perfeito entre informação e poesia. Sempre tentei encontrar esse equilíbrio, e é muito difícil. Na maior parte das vezes a obra falha. Quando é tem demasiada informação torna-se muito didática. Outras vezes torna-se demasiado poética, demasiado bonita, obscura, misteriosa. Para mim a obra sublime , perfeita, é a que atinge esse equilíbrio perfeito: informa-nos, comove-nos, ilumina-nos.

O que é ser demasiado bonita?

Significa que o conteúdo desapareceu. É tão bonita que a beleza dissipa o possível conteúdo da obra. Não acho que isso seja bom.

Ao longo dos anos, tem-se aproximado desse equilíbrio?

Algumas obras estão mais próximas do que outras. Cada uma das minhas obras é um exercício de comunicação, não é uma obra prima. Aprendo com ele e tiro as minhas lições: isto funciona, isto falhou, isto falhou miseravelmente. A minha carreira tem sido assim, uma sucessão de exercícios, a maior parte fracassados.

Como identifica as falhas? São técnicas ou sempre concetuais?

É sempre um problema concetual. Acontece na maior parte das vezes porque, quando fazemos uma obra e a pomos no espaço público, perdemos o controlo. Eu e os meus assistentes fazemos sempre um exercício quando estamos prestes a mostrar uma obra. Sentamo-nos todos juntos e pensamos: qual é a pior coisa que poderia acontecer? Tentamos imaginar coisas, e às vezes falhamos. Acontecem coisas que nunca pensámos que pudessem acontecer, porque essa é a lógica do espaço publico: nunca sabemos o que pode acontecer.

Estou a pensar em A Logo For America com a frase "This is not America". As pessoas relacionam-se com ela de forma muito diferente. E agora com a administração Trump...

A obra foi feita em 1987 e era um projeto puramente linguístico que questionava o facto de os americanos dizerem: Welcome to America (Bem-vindo à América) e God bless America(Deus abençoe a América), e não estavam a falar da América, estavam a falar dos Estados Unidos. Estavam a apagar o resto do continente do mapa. [A Logo for America] Foi mostrada num único ecrã em 1987 em Times Square. Em 2014 foi comprada pelo museu Guggenheim e eles decidiram pô-lo outra vez em Times Square, que tinha mudado radicalmente: havia mais de 200 ecrãs. Alugaram 65 ao mesmo tempo e as reações foram radicalmente diferentes. Naquela altura Obama estava expulsar imigrantes, quase dois milhões. O significado de ser americano estava a ser desafiado todo o tempo, com as pessoas a dizer: "Temos o direito a estar aí." As pessoas viram-no como uma critica e depois tem sido mostrado uma e outra vez no México, em Bogotá, Londres, Vancouver. Agora estamos com o Trump, que dá uma ideia dos EUA que a maioria dos americanos rejeita. Então veem aquilo e dizem: Yes! This is not America. Nunca poderia sonhar que o significado mudaria e que se tornaria na minha obra mais importante.

É?

Sim, é a mais reproduzida. É usada em mais de 30 livros escolares, para ensinar crianças o que é a América. E claro que é a minha obra mais reproduzida na América Latina.

Como foi a performance The Cloud na fronteira com o México, entre Tijuana e San Diego?

Foi muito comovente. Cerca de 3000 morrem a cada dez anos, apenas por tentarem passar a fronteira. A situação não era [em 2000] tão dramática como é hoje. Hoje estão a separar bebés e crianças das suas mães, é criminosa a forma como estão a tratar os imigrantes agora. Mas na altura as pessoas estavam a afogar-se no rio ou a ser mortas por carros. Porque na Califórnia a vedação foi construída junto a uma estrada, e não há semáforos, não há nada, de propósito. Estas mortes nem sequer apareciam nos jornais, porque eles eram pobres, eram mexicanos, eram de El Salvador, de Nicarágua, estas mortes eram invisíveis. Eu queria criar um lugar onde as pessoas pudessem vir fazer o luto dos seus entes queridos. Trabalhei com sete organizações não-governamentais e convidamos as famílias das vítimas. Apareceram cerca de 1200 pessoas, tocaram música clássica, fizemos uma homenagem às suas vidas, perdidas. No final, libertámos "a nuvem", os balões, e foi bonito porque eles deveriam ter ido para o mar, mas o vento mudou, e eles foram na direção do México. Então, de certo modo, todos estes imigrantes que morreram voltaram a casa. Foi muito comovente, muito catártico.

As pessoas tinham a noção de que por detrás daquilo estava um artista?

Sim. Falei com muitos deles, convidei-os, recebi-os quando chegaram. A ideia é expandir o que é a arte e trazer novos públicos. Muitos deles nunca tinham estado numa performance. Nunca pensaram que esta cerimónia bonita, com muitas conotações religiosas, também era uma obra de arte.

Como geriu a relação entre o peso dos assuntos que trabalha e a família?

Não foi fácil, mas nunca levei estas realidades para casa. O meu estúdio era apocalíptico, mas a minha casa era um lugar seguro, um lugar de conhecimento, com os livros, a música. O meu filho [o músico Nicolas Jaar] nasceu numa casa musical. Colecionei música a minha vida toda. Especializei-me em musica contemporânea africana de influência portuguesa, tenho milhares de discos de Angola, Moçambique, Cabo Verde, e uma coleção daquilo a que se chama world music, rock, e jazz. Por isso o meu filho cresceu nesse ambiente. E a sua mãe era bailarina, andou na escola do Merce Cunningham.

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